São Paulo, domingo, 21 de junho de 1998
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O Senado resgatou o tesouro da oratória política; Supersecretariado; Otáriomóvel; Gustavo Franco falou do que não devia; Uma boa biografia de um gênio gélido; Vem chumbo; Déficit do Dunga

ELIO GASPARI

O Senado resgatou o tesouro da oratória política
O senado acaba de editar um livro e uma caixa com cinco discos intitulados "Grandes Momentos do Parlamento Brasileiro". São uma verdadeira maravilha e é uma pena que a tiragem de 5.000 cópias já tenha sido quase toda distribuída entre mandarins de Brasília, museus e bibliotecas. Restam 2.000 cópias, mas são 4.000 os pedidos na fila.
Nos cinco discos estão guardados 14 discursos e 4 valiosos registros de duas grandes crises: a renúncia de Jânio Quadros, de 1961, e a deposição do presidente João Goulart, em 1964.
Na amostra da oratória política nacional, duas são as jóias. A mais bonita, para se ouvir como se revê "E o Vento Levou", é o discurso do deputado Afonso Arinos de Melo Franco, no meio da crise de agosto de 1954. Foi pronunciado no dia 9, logo depois da morte do major Rubens Vaz, abatido por um pistoleiro contratado para assassinar o jornalista Carlos Lacerda, porta-voz do golpe contra o presidente Getúlio Vargas.
É provável que toda a cultura da atual Câmara dos Deputados caiba na pasta com que Afonso Arinos entrava no palácio Tiradentes. Jamais se voltou a fazer discurso igual, pelo idioma, pela estrutura e pelo estilo de violência.
Arinos começa suave, quase pastoral, referindo-se a uma viagem de Vargas a Minas Gerais. Como quem não quer nada, queixa-se de que Vargas chamou a oposição de mentirosa, mas reconhece que é dificil saber o que é a verdade. Passa a um segundo movimento e crava a estaca: "Ao sr. Getúlio Vargas respondo que, se não é possível saber o que é a verdade, é perfeitamente possível saber-se o que não é a mentira".
A partir daí, descasca as malfeitorias oficiais, sempre indagando: "Será mentira?" No primeiro bote, responde: "Ou será ele o grande mentiroso, ou será ele o grande enganado, ou será ele o pai supremo da fantasmagoria e da falsidade?"
Como num concerto, Arinos (sempre de improviso) vai ao terceiro movimento. Dirige-se a Vargas com cerimônia: "Digo a Vossa Excelência: (...) Tenha a coragem de perceber que o seu governo é, hoje, um estuário de lama". (Um aristocrata como ele não diria 'mar de lama', como a escumalha.)
Finalmente, vai ao último compasso. Dirige-se "ao homem Getúlio Vargas". Sempre repetindo: "Eu lhe digo, homem" ou "eu lhe solicito, homem". Até que termina: "Lembre-se, homem, pelos pequeninos, pelos humilhados, pelos operários, pelos poetas: lembre-se dos homens e deste país e tenha a coragem de ser um desses homens, não permanecendo no governo se não for digno de exercê-lo".
Vargas matou-se 15 dias depois, na madrugada de 24 de agosto. Arinos não gostava de falar desse discurso porque via nele uma contribuição que julgou decisiva para a morte de um semelhante. Tamanho foi seu constrangimento que, mesmo depois de sua morte, a família teve dificuldades para liberar a gravação. Passados 44 anos, fez um bem à cultura nacional.
Nada há na coleção com a qualidade dessa peça, mas pelo menos dois outros discursos tocam a alma de quem os ouve. Um é de Juscelino Kubitschek, no Senado, em junho de 1964, sabendo-se cassado pela histeria civil e militar semeada pelo golpismo que levou Vargas ao suicídio.
Outro, belíssimo, é o do senador Teotonio Vilela, feito em setembro de 1976, dias depois da morte de Kubitschek. JK, um proscrito, morrera num acidente de estrada. Fora levado ao túmulo, por uma das mais emocionantes multidões já formadas no Brasil.Transformara-se a dor em poesia. O presidente Ernesto Geisel teve que decretar três dias de luto oficial por um homem que não podia exercer seus direitos de cidadão.
Assim disse o Menestrel das Alagoas:
"A marcha funerária quase que se transformou em marcha triunfal".
E concluiu com a solenidade de um boêmio tão culto quanto amável: "Olhai, presidente Ernesto Geisel, a alma encantadora das ruas é a nossa alma também, perene e eterna."
Há muito cascalho, mas esse é um problema da oratória política, não da edição. O discurso de Tancredo Neves em homenagem a JK é pífio, o de San Tiago Dantas despedindo-se da Câmara, exercício de egolatria provinciana e a despedida de Otávio Mangabeira, tralha pernóstica.
Como o Senado não é uma produtora de discos, não lhe cabe produzir uma reedição comercial dessa preciosidade. Para propagar um trabalho tão bom, alguma empresa poderia oferecer uma parceria ao Senado, transformando esse grande momento do Parlamento Brasileiro em coisa mais acessível.

Supersecretariado
Os ministros Luiz Carlos Bresser Pereira, da Reforma do Estado, e Paulo Paiva, do Planejamento, têm seis secretárias, mas elas não os atendem com exclusividade. No caso de Bresser, cinco são partilhadas com seu chefe de gabinete e uma com um dos secretários do ministério. No de Paiva, todas as seis.
Assim, fica reduzida para dois a lista dos ministros que, de acordo com o levantamento da publicação "Dicas de Brasília", dispõem de seis secretárias no atendimento direto: Pedro Malan, da Fazenda, e Luiz Carlos Mendonça de Barros, das Comunicações. Os dois irmãos Mendonça de Barros somam dez secretárias, pois o doutor José Roberto, secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior, tem quatro. É provável que o Banco Matrix não tivesse dez secretárias ao tempo em que os tinha como acionistas.

Otáriomóvel
Está em circulação a última idéia maluca do governo relacionada com a seca. Já houve importação de camelos e chuvas artificiais. Agora há o secamóvel. Trata-se de um veículo dotado de antena parabólica e computador, capaz de circular pelo semi-árido nordestino, enviando informações imediatas a Brasília. Formariam uma frota de 60 carros e custariam à Viúva cerca de R$ 60 mil por mês. Dinheiro suficiente para subsidiar a sobrevivência de 670 famílias. Por falta desse subsídio, os miseráveis de Nova Russas, no Ceará, saquearam 8.000 merendas escolares.
Trata-se de fluvial asneira, produto da fantasia de Brasília associada ao comércio de badulaques, destinada a drenar dinheiro público à custa da ignorância de quem está encarregado de administrá-lo.
Perto de 80% da área do semi-árido nordestino está coberta pelo sistema de comunicações dos telefones celulares. Não há cidade da região sem serviço telefônico eficiente, operado por profissionais capazes. É mais fácil entrar na Internet em Canudos, na Bahia, do que em Ipanema, onde há água, mas há também a Telerj.
Secamóvel é coisa de cinquentão da Geração Paissandu que viu o filme "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos (baseado num romance de 1938), e acredita que aprendeu o que precisava saber sobre a seca.

Gustavo Franco falou do que não devia
Agora que o Banco Garantia foi vendido para o Crédit Suisse First Boston por um ervanário próximo de US$ 1 bilhão, ninguém pode ajudar ou atrapalhar a transação. É boa, portanto, a oportunidade para se avaliar o comportamento do presidente do Banco Central, Gustavo Franco, na primeira semana de maio, quando o assunto ainda estava no pano verde.
Franco deu uma curta declaração ao jornalista Fernando Dantas, dizendo que o Garantia tinha "um fundo de comércio extraordinariamente valioso e cobiçado".
Essa declaração foi impertinente por dois motivos. Primeiro, porque não compete ao presidente do Banco Central dar opiniões sobre casas de crédito que estão sendo mercadejadas. Segundo, porque não compete ao presidente do BC opinar sobre os valores e cobiças que envolvem fundos de comércio. Ele poderia ter dito que os banheiros do Garantia são muito confortáveis, visto que qualquer um pode visitá-los, conferindo a qualidade das pias. No caso dos fundos de comércio, trata-se de uma opinião sobre coisas intangíveis.
Gustavo Franco perdeu uma grande oportunidade de ficar calado, sobretudo porque seu pai, Guilherme Arinos, é dono de 0,5% do Garantia e, numa conta conservadora, deverá sair da transação com algo como US$ 4 milhões no bolso.
O comportamento funcional do atual presidente do Banco Central em relação ao Banco Garantia desautoriza qualquer associação lógica, segundo a qual ele teria dito que o banco valia muito porque estava interessado em aumentar o patrimônio de sua família. Pelo contrário. Em diversos episódios anteriores, bateu de frente com o Garantia, até com truculência.
Ao louvar o valor do fundo de comércio do banco, Gustavo Franco, um dos melhores exemplares da geração de peagadês que pretende ensinar os brasileiros a se comportar como suecos, agiu como um pajé carijó. É aí que está o problema. Ou se brinca de peagadê, ou se brinca de carijó. O que Franco não pode fazer é abrir uma reunião com camisa do Brooks Brothers e reaparecer com penas de papagaio no beiço.
Vale lembrar que nos Estados Unidos, sede do mercado e das lojas Brooks Brothers, a coisa funciona de outro jeito. Lá, o ex-secretário do Tesouro James Baker foi repreendido pelo consultor da Casa Branca quando se descobriu que dera palpites sobre projetos de reescalonamento da dívida externa brasileira sendo acionista de um dos bancos credores, o Chemical. É por isso que nos Estados Unidos os bancos conhecem os seus limites, os burocratas cumprem suas obrigações, o capitalismo funciona e até hoje não foi necessário fazer Proer.

Uma boa biografia de um gênio gélido
Está nas livrarias, e é coisa muito fina, a biografia "Einstein - A Ciência da Vida", de Denis Brian. Cuida de um personagem fenomenal e ainda traz, no recheio, uma história do progresso da física (e da mesquinharia de alguns físicos) na primeira metade do século. De quebra, permite uma compreensão do que vem a ser a Teoria da Relatividade, coisa que todo mundo acha que algum dia terá tempo para entender.
Einstein foi apenas um sujeito que, quando garoto, imaginou-se percorrendo o universo a bordo de um facho de luz. A partir dessa idéia, na qual sua imaginação voava com a velocidade da luz, viajou lindamente.
Brian escreveu uma biografia clássica, cronológica, meticulosa e até um pouco aborrecida.
Um de seus melhores momentos, inclusive na elegância, está na narrativa do caso da filha que Albert e Mileva Einstein tiveram em 1902. A menina chamou-se Lieserl. Como os pais de Einstein eram contra a relação com Mileva (por sérvia), esse cientista cuja doce e irreverente figura haveria de se tornar símbolo de alegria e tolerância, simplesmente deu a filha, não se sabe a quem.
A filha de Einstein sumiu. Ele próprio perdeu seu rastro. Em 1935, quando lhe contaram que havia uma senhora dizendo ser sua filha, contratou um detetive particular para acompanhar o caso, mas não se sabe a que resultado se chegou. A existência de Lieserl só foi revelada em 1987 e o maior conhecedor do papelório deixado por Einstein supõe que ela sobreviveu ao pai, morto em 1955. Acredita que a senhora nunca soube quem era seu verdadeiro pai.
Toda vez que a vida de Einstein é recontada, ele ressurge na gloriosa condição de patrono e vingador dos estudantes que sofrem no vestibular e são obrigados a aturar professores recalcados, dispostos a rogar pragas sobre o futuro dos alunos.
Einstein levou bomba no exame de admissão para a Escola Politécnica de Zurique. (Dançou em francês, química e biologia.) Quando finalmente conseguiu entrar, ouviu o seguinte diagnóstico do instrutor de física Jean Pernet: "Vocé é dedicado, mas não dá para a física. Para seu próprio bem, escolha outra coisa, talvez medicina, literatura ou direito."
Nem todo mau aluno é um Einstein, mas todo agourento é um Pernet.

Vem chumbo
O governo está a um passo de tomar uma decisão. Se a repressão ao contrabando de cigarros para o mercado interno não pode contar com a ajuda sincera dos fabricantes, é melhor explodir a máquina de exportações dessa indústria. Perde-se mais deixando-a funcionar como guarda-chuva da contravenção.

Déficit do Dunga
A ekipekonômica insiste em atribuir à Previdência Social o déficit das contas públicas. Como isso é lorota, os sábios poderiam passar a dizer que o déficit vem sendo produzido pela influência de Dunga nos números da Previdência. Continuaria sendo lorota, mas daria ao assunto um pouco do alegre sabor da Copa do Mundo.
Tomando-se os números do governo no primeiro trimestre deste ano resulta o seguinte:
1) graças ao Pacote 51 a receita da Viúva ficou em R$ 47 bilhões, 26% acima do que se conseguiu no mesmo período do ano passado. Um sucesso;
2) mesmo tendo aumentado inúmeras despesas operacionais, o governo fechou as contas com um superávit de R$ 2,6 bilhões;
3) a Previdência arrecadou R$ 11 bilhões e pagou R$ 11,9 bilhões em benefícios. Produziu um déficit de pouco menos de R$ 1 bilhão.
Se os números são esses, como é que se fechou o trimestre com um buraco de R$ 7,2 bilhões, equivalente a 3,3% do PIB?
Foram os juros. No primeiro trimestre de 1997, pagaram-se R$ 5,2 bilhões em juros. No primeiro trimestre deste ano, a conta foi para R$ 10,8 bilhões (5% do PIB). Um aumento de 109%.
Quando a ekipekonômica mistura o déficit provocado pelos juros com as despesas da Previdência, ela leva a choldra a refletir sobre uma outra característica da política do governo de FFHH. Os juros que o Brasil dá aos gatos gordos da globalização equivalem ao dinheiro que vai para os aposentados, um pessoal que vive com uma média de R$ 200 por mês. (R$ 1.600 para os funcionários públicos.)

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