São Paulo, domingo, 21 de junho de 1998
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Uma poesia virtual

LEDA TENÓRIO DA MOTTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que foi mesmo que aconteceu?! Haveria de perguntar o leitor, impedido de localizar qualquer evento reconhecível, a começar pelo "eu lírico", nestes "Algorrritmos" de E.M. de Melo e Castro.
Não fosse o subtítulo -"Infopoemas"- a advertir que estamos aqui à distância dos simples fatos analítico-discursivos, com o sujeito no centro, de quem se diz alguma coisa. E em pleno computador, com sua infinita combinatória, infinitamente virtual, multidirecional, transígnica, que vai além do plano achatado da página, desenvolvendo luzes, antes que discursando.
É nisso que parece insistir o próprio título "Algorrritmos", com seus "erres" a mais, que fazem redundar em musical o sentido de "processo de cálculo" de "algoritmo", palavra do repertório da matemática que Melo e Castro desfigura. E esta outra, igualmente preciosa, "pixel" (em informática, o menor ponto de luz e informação na tela do computador, a unidade discreta equivalente ao "fonema" linguístico), em que ele também se demora, na apresentação, enfatizando que, branco de significado, o "pixel" pode adquirir, potencialmente, pela sua mobilidade, todos os significados, o que implica que a transformação é sua primeira propriedade poética.
Dito de outra maneira, trata-se, graças à máquina, não de poemas, mas... de poesia. Isto é: de pura fabricação, de pura urdidura de sentidos, verbais e não-verbais, com ênfase no processo, oferecido à operação final do leitor...
Até aí tudo bem. Ocorre porém que, longe do computador, mas já na multiplicidade dos códigos, e extrapolando a ordem linear da folha de papel, a velha poesia concreta, dita ainda "verbivocovisual" -que, aliás, saía, entre outros, de Mallarmé, cujo "Lance de Dados" e cujo sonhado "Livro" total não seriam mais que uma antevisão da infopoética, como já se notou-, não está assim tão distante disso tudo. Toda boa poesia, aliás, é não apenas concreta, mas uma "poética do pixel": uma profusão de pontos de luz.
O que não impede Melo e Castro de se sentir um passo adiante, como nos confidencia na abertura. Por vir agora transgredir, com suas imagens virtuais, a própria transgressão. Complicando, nos diz ele, até níveis "dificilmente imagináveis", a questão estética que leva a peito enfrentar. Ele, que introduziu em Portugal, nos anos 60, as experimentações do grupo "Noigandres" e tornou-se, em 1968, o pioneiro da videopoesia. Ele que é autor de uma obra poética de mais de 20 livros, reunidos em "Trans(a)parências" (1989).
Todo esse trabalho dá mostras de um inegável fôlego experimental. Mas não é a simples transgressão que interessa, convenhamos, e sim a qualidade da coisa. Nem se é inovador por simples mudança de veículo. Nesse sentido, julgue o leitor se "Algorrritmos", no fim das contas, não se deixa afetar por certo cansaço, e se não estará mais para poema que para poesia. Como quando vai, previsivelmente, de "som" a "sombra" (pág. 46). Ou quando orquestra uma passagem de "gota" a "esgota" (pág. 43), esta também um tanto rude.
Mas isso em nada desmerece o ensaísta que é Melo e Castro. Ninguém está obrigado a ser excelente em tudo. E a prosa crítica é, cada vez mais, literatura. É aí que o autor de "Algorrritmos" mais se revela escritor.

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