São Paulo, quarta-feira, 24 de junho de 1998
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Os mercados e o bem-estar das nações

MERTON H. MILLER

O primeiro e maior dos grandes economistas modernos, Adam Smith, falava da riqueza das nações, não do bem-estar das nações; mas os economistas sempre trataram os dois termos como se tivessem o mesmo significado. Porém Smith fez muito mais que associar riqueza e bem-estar; ele explicou o processo que faz com que a riqueza e o bem-estar de uma nação possam crescer.
Smith identificou esse processo com a intensificação do que ele chamou "divisão do trabalho" e exemplificou com a famosa história da fábrica de pregos.
Um operário, por muito hábil que fosse, só conseguia produzir uns poucos pregos diariamente se trabalhasse sozinho. Mas, ao dividir o trabalho entre vários, multiplicou a produção. Com a repetição, aumentavam a habilidade e a eficiência de cada operário na sua tarefa limitada. E a sucessiva divisão do trabalho possibilitava a mecanização nas diversas tarefas, fazendo crescer ainda mais a produtividade.
Claro: acumulando enormes quantidades de pregos, não se acrescenta nada ao bem-estar das nações. Os ganhos de eficiência resultantes da divisão do trabalho só podem ser aproveitados se os operários e os industriais que produziram os pregos puderem trocá-los por outros produtos, também fabricados com as vantagens da divisão do trabalho.
Aqui entra a questão dos mercados -e eles são indispensáveis no esforço para elevar o padrão de vida. Se você não pode trocar os produtos que fabrica pelos que não pode fabricar (ou não pode fabricar tão eficientemente), você fica sem incentivo para participar do jogo. Essa é a dura lição que a vida deu à antiga URSS e seus satélites.
Tratando-se das mercadorias comuns e tangíveis, a maioria das pessoas já entendeu e assimilou a idéia de que o livre funcionamento dos mercados é decisivo para continuar elevando o padrão de vida (não todos. São pouquíssimos os economistas acadêmicos comprometidos com o livre comércio de maneira consequente. Muitos, principalmente os que têm influência política, gostam de ter um mercado livre nos produtos que compram, mas não nos produtos que vendem).
Contudo os mercados para os produtos tangíveis são uma porção cada vez menor da economia em face dos mercados de serviços e dos financeiros. Como é que esses mercados mais abstratos podem refletir a divisão do trabalho apontada por Adam Smith, tão decisiva para o bem-estar das nações?
Os mercados de ativos financeiros e, principalmente, os de derivativos que surgiram em torno deles nos últimos 20 anos dão lugar a uma divisão mais eficiente, não tanto de trabalho (se bem que fazem isso também), mas de riscos.
Um exemplo é o mercado do arroz. Historicamente, o comércio japonês de arroz no século 18 foi o primeiro mercado moderno para a transferência de riscos. Apesar de seu sucesso (ou devido a ele), foi eliminado pelos burocratas do "shogun".
Imagine duas pessoas. A primeira é um agricultor que ainda não colheu seu arroz; a outra, o proprietário da máquina beneficiadora, que revende ao comércio. O agricultor se preocupa porque o preço do arroz no mercado pode cair antes mesmo da colheita. Mas o beneficiador, comprometido com entregas futuras para seus clientes -os comerciantes-, está preocupado porque os preços podem dar um salto acima dos que ele contratou.
Aqui entra a Bolsa de futuros. O agricultor pode vender um contrato de futuros de arroz; se, de repente, há uma forte queda no preço do produto, ele vai, sim, sofrer uma perda no valor de seu arroz ainda não colhido. Mas, por outro lado, terá um ganho do mesmo valor para compensar, porque tem o que chamamos de "posição curta" nos futuros de arroz.
Por sua vez, o beneficiador que compra (ou assume uma "posição longa" nos contratos de futuros vendidos pelo agricultor) vai perder nesses contratos no caso de queda de preços. Mas terá um ganho igual e compensatório no valor dos seus contratos para entrega futura aos clientes. Logo, tanto o agricultor quanto o beneficiador estão plenamente protegidos contra perdas ("hedged").
Eles trocam os riscos entre si, e isso estimula a disposição para empreender investimentos nas suas atividades, elevando, assim, a produtividade.
Não quero, com esse exemplo, afirmar que na sociedade moderna as Bolsas de futuros sejam os únicos veículos para eficientes transferências de risco. Hoje, o principal mecanismo é a Bolsa de Valores, que permite que o grande risco de enormes investimentos de capital seja dividido por muitos investidores individuais (até milhões).
Mas, se é verdade que esses mercados são tão benéficos ao bem-estar das nações, por que são tão temidos e odiados? Em grande parte, no caso dos mercados de derivativos, todas as inovações tiram negócios de rivais já estabelecidos.
Evidentemente, a velha guarda não pode reconhecer isso abertamente. Eles argumentam que os mercados de derivativos são a causa de todo tipo de turbulência na economia. Nada disso é verdade.
Mas os contínuos ataques e anúncios de "desastres" por causa dos derivativos têm, sim, um impacto negativo na opinião pública -a tal ponto que há uma constante ameaça de novas regulamentações, que estrangulariam a negociação de derivativos por trás da fachada de evitar desastres.
Apesar de todo o barulho na mídia sobre os problemas do Barings, entre outros, o verdadeiro custo social nesses casos foi zero. Não houve prejuízo para a sociedade ou para pessoas que não as diretamente envolvidas; praticamente nenhuma destruição da riqueza das nações. Apesar dos altos valores negociados, não houve perdas reais como em desastres naturais -como terremotos que destroem casas, fábricas e infra-estruturas no valor de bilhões de dólares, além de milhares de vidas. Esses, sim, devem ser considerados desastres.

Tradução de Thomas Nerney

Norte-americano, 75 anos, doutor em economia pela universidade Johns Hopkins, professor emérito de finanças da Graduate School of Business (Universidade de Chicago, EUA).

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