São Paulo, sexta-feira, 26 de junho de 1998
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Canção foi rotulada como música do fascismo

RUI NOGUEIRA

em São Paulo
Mísia faz parte de uma geração, ao lado de Maria João, Dulce Pontes e Teresa Salgueiro (Madredeus), que se beneficiou do fim de uma falsa polêmica surgida logo depois da Revolução dos Cravos, em abril de 74.
Aos 48 anos de fascismo salazarista, em que todas as artes sucumbiram ao peso da censura imposta pela aliança moralista entre Estado e religião, resistiu apenas a tradição do fado.
Compositores e intérpretes pagaram um preço: a canção urbana, surgida nas tabernas de bairros populares em meados do século 19, foi autorizada a explorar apenas a visão fatalista. No nascimento, essa visão era apenas uma das várias formas de cantar fado.
"Há algum tempo eu fiz uma pesquisa e levantei composições que faziam parte do que podemos chamar de um fado anarquista cantado entre os operários", conta Mísia.
O fado também era alegre, e de Lisboa cantava-se mais do que o cheiro a mar e água benta. No tempo do fascismo, o fado corridinho fez escola carregado por quadras simplórias.
Limitado a temas conformistas, o fado foi rotulado como música do fascismo, caiu em desgraça nos anos da revolução e saiu das paradas.
"Hoje, temos muito mocinho cantando fados reacionários e velhas vozes interpretando fados revolucionários. Mas o que importa é a fuga dos lugares-comuns", afirma Mísia. Para o próximo CD, em produção, ela tem duas escolhas feitas: um poema de Cecília Meireles ("Trânsito") e outro de Drummond ("Ainda Que").
Esse cuidado com as palavras foi trilhado de forma "arriscada e solitária", lembra Mísia. Muitas vezes, fora de Portugal.
Filha de pai português e mãe catalã, ela não acha que a situação de forasteira produza, por si só, algum milagre criativo. Admite, no entanto, que os portugueses caem mais facilmente na "armadilha da memória afetiva", quando estão fora do país.
"Parece que somos melhores lá fora, nos sentimos mais portugueses."
Paralelo a um tempo de refinamento dos sentidos, muitos residindo ou passando longas temporadas no exterior, os novos intérpretes portugueses trocaram informações e experiências estéticas com gente não apenas da música, mas também do cinema e do teatro.
Um intercâmbio que se reflete nas dedicatórias que Mísia faz em "Garras" -da brasileira Maria Bethânia, uma fadista como muitas portuguesas gostariam de ser, aos cineastas Pedro Almodóvar, da Espanha, e Manoel de Oliveira, de Portugal.
Segundo Mísia, "foram pessoas que funcionaram como uma luz ao fundo do corredor", nos anos "arriscados e solitários" em que a nova geração de músicos tentava se impor. Conseguiu.
(RN)

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