São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998
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Crises de lá e crises de cá

ROBERTO CAMPOS

A Ásia voltou às manchetes, mais uma vez sob a forma de crises várias, econômicas e atômicas. E cá em casa, a campanha eleitoral, que está começando feroz, funciona como um complicador adicional. Lula e Brizola, de pazes feitas, sem sapos barbudos nem pescoços de mãe para atrapalhar, principiaram por dar a impressão de que pretendiam colocar cargas explosivas nos pontos mais fracos da estrutura, para tentar implodir o edifício econômico do país. O raciocínio aparente seria que, se aproveitassem a confusão e os temores provocados pelas ondas de insolvência que abalaram os sistemas financeiros de países do sudeste e do leste asiático (antes aureolados por uma boa imagem internacional de solidez econômica e confiabilidade), induziriam no escarmentado investidor estrangeiro o receio de que o Brasil iria parar na UTI internacional. Gerar-se-ia, como resultado, um efeito cumulativo de desconfiança e redução dos ingressos de capitais ou até algum refluxo dos investimentos.
Não é preciso um PhD na matéria para perceber que, se essa situação se agravasse, o governo se veria diante de um dilema dificílimo. Ou se decidia a manter-se fiel à política de estabilização (e, nesse caso, seria forçado a segurar ou elevar ainda mais a taxa de juros e a apertar os cortes de gastos por onde pudesse) ou então cederia à tentação (sempre enorme em tempos de eleição) de afrouxar o aperto, fazer uma série de acenos ao "social", mesmo ao preço de ter de aceitar um repique inflacionário.
Na primeira dessas hipóteses, aumentaria o mal-estar que a austeridade econômica sempre provoca, reduzir-se-iam as oportunidades de emprego e o governo perderia popularidade. Na segunda, Lula e Brizola ganhariam em dois sentidos: por um lado, um eventual retorno inflacionário desmoralizaria a aposta no Plano Real; e por outro, as esquerdas poderiam chamar a si as glórias de qualquer êxito do governo, e dizer que tinham forçado Fernando Henrique a mudar a sua orientação "neoliberal".
Neste momento, parece que o consórcio PT-PDT resolveu maneirar um pouco, provavelmente ao se dar conta de que o tiro poderia sair pela culatra. A opinião pública não está reagindo favoravelmente a essa tentativa de exacerbar os problemas econômicos internos e externos do país para, com isso, aleijar a candidatura de Fernando Henrique. É até possível -sejamos tolerantes- que, no começo, os dois ex-irreconciliáveis e atuais inseparáveis paladinos do esquerdismo caboclo não tivessem compreendido bem o que estavam fazendo. O forte desse pessoal, como se sabe, não é propriamente o alfabeto...
Mas ao fazerem sua desastrada mexida revelaram, sem o querer, que o público está precisando de mais amplos esclarecimentos sobre o que está em jogo, tanto na economia brasileira, quanto no sistema internacional. Como oficial do mesmo ofício, sou forçado a reconhecer que os economistas, por este mundo afora, não têm feito muito para diminuir as dúvidas na cabeça das pessoas. As anedotas que circulam entre os profissionais, aliás, são típicas: por exemplo, que a economia é o único campo em que duas pessoas, o austríaco Hayek e o sueco Myrdal, podem receber o Prêmio Nobel ao mesmo tempo por defenderem teorias diametralmente opostas... Não é muito difícil entender que alguns cidadãos comuns -desses que têm de trabalhar duro para sustentar a família, perplexos com as crises que vêm do outro lado do planeta e preocupados com o pouco dinamismo da economia, com a ameaça do desemprego e com o aparente encolhimento das oportunidades futuras para os filhos -se perguntem se, afinal, a eficiência da auto-regulação do mercado não será mesmo um mito. E se, feitas as contas, não será preciso recorrer mais ao Estado.
Indagações dessa natureza tendem a gerar muito mais calor do que luz se -o que é um mau hábito mental nada raro- as reduzirmos a termos absolutos e irredutíveis. Nenhuma economia real corresponde exatamente ao que se obtém com simulações baseadas exclusivamente em modelos teóricos abstratos, que têm de ser sempre reducionistas. Sem o que, aliás, não seriam pensáveis. O mundo real apresenta uma infinidade de complicações, lacunas, saltos -não-linearidades, como se diz no jargão. E isso é verdade tanto para as economias de mercado, "capitalistas", quanto para as economias de comando, inclusive as "socialistas", com seus vários graus de planificação central. O mercado, entregue a si mesmo, tende a ajustar-se -mas, durante o processo de ajustamento, os custos e benefícios se distribuem de maneiras sempre desagradáveis para alguns. Em outras palavras, a racionalidade do mercado não quer dizer que todos se sintam felizes.
Por outro lado, há muito os homens deixaram de acreditar na suprema racionalidade de abstrações políticas tais como a "vontade geral" de Rousseau. A tentação da ditadura dos sábios e dos bons é antiga. Já Platão, há 24 séculos, decepcionado com a democracia direta ateniense, caiu nessa -e acabou indo paparicar o tirano de Siracusa, personagem parece que não dos mais palatáveis, embora, ao lado de próceres socialistas como Stálin, Mao, ou Pol Pot, lembraria um desses graciosos garotinhos do anúncio de TV da Parmalat...
O mercado é um ininterrupto plebiscito, em que as preferências e os eventuais erros estão sujeitos a um permanente processo de revisão e ajustamento. Os governos, mesmo nas melhores democracias, são reformados apenas de tempos em tempos, por processos difusos, em que grupos mais estridentes conseguem impor-se, frequentemente, aos interesses da maioria silenciosa. E nem políticos nem burocratas, peritos em gastar o dinheiro dos outros, se preocupam com custos e benefícios. Sua racionalidade depende dos seus interesses eleitorais ou de carreira, não da eficiência e da satisfação do pagante.
A crise asiática resultou, basicamente, de má gestão bancária: dinheiro emprestado sem cuidado com o retorno. Mas crises desse gênero são sistêmicas -podem dar septicemia econômica. As medidas saneadoras tomadas, em tempo, pelo governo com o Proer, custaram pouco diante das graves consequências que evitaram. O Japão, a segunda maior economia do mundo, também ruim na gerência financeira, foi enrolado pela onda, e hesita em reflacionar a economia, apesar da insistência das outras grandes potências industriais. O governo americano interveio para segurar o iene -e como haveria de ser de outra maneira, se todos dependem de todos, e não dá para fechar num depósito o desarranjo alheio? A Rússia, que aprendeu à custa de dezenas de milhões de vítimas, a desconfiar das alegrias do socialismo, vê-se diante da necessidade de medidas muito duras: Kiriyenko, que está agora querendo de US$ 10 a US$ 15 bilhões do FMI para armar uma "rede de segurança", vem apresentando aos investidores propostas de um bruto arrocho fiscal, e agora, em Salzburgo, o ministro da Economia, Urinson, garantiu que não haverá desvalorização cambial. Soa familiar...
O Brasil também está pagando a conta dos erros acumulados no passado, ainda que bem mais administráveis que os da Rússia. Mas tem um problema adicional do subdesenvolvimento: a loucura da explosão demográfica que, desde 1950, somou mais 115 milhões de habitantes aos menos de 52 de então. Para complicar, praticamente todo esse crescimento se concentrou nas cidades cuja população foi multiplicada por mais de seis. Será possível dar-se a essa gente toda escola, médico, comida, transporte, casa? E estamos sobrevivendo 25 anos mais, em média, do que em 1940. Dará para continuar a bancar para todo o mundo aposentadorias por tempo de serviço, antes dos 50 anos? Não dá. Americanos, franceses, alemães, estão todos tendo de enfrentar problemas parecidos, e a solução é mesmo aumentar a idade-limite e conter os benefícios. Infelizmente, a multiplicação dos pães continua sendo um milagre e não pode ser feita por decreto...

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