São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998
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"Terra em Transe", o filme

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

É um lugar comum dizer que certos filmes perdem todo impacto quando vistos no vídeo. Nesses tempos de megaproduções hollywoodianas, a principal queixa é a redução operada pela tela de TV na grandiosidade dos efeitos especiais.
"Terra em Transe", de Glauber Rocha, nada tem a ver com esse tipo de filmes. Revê-lo, na última quinta, porém, na tela grande da Cinemateca, depois de uma outra revisitação no vídeo, meses atrás, confirmou a diferença. Tanto quanto "Guerra nas Estrelas", mas por outras razões, "Terra em Transe" não cabe na TV.
Formalmente, o nervosismo da câmera, a teatralização das cenas, a imponência dos gestos, a brasileira convivência da economia construtivista com a herança barroca -tudo isso encolhe.
Consequentemente, diminui a potência do conteúdo: a "mensagem" do meio televisivo "esfria" o filme. Ele não foi feito para ser visto na poltrona com interrupções para atender telefone e pegar pipoca no microondas.
Sua recepção também parece exigir a platéia, o contato público: as ondas de incômodo, fascínio, ironia e agressividade passeiam pela sala escura, de corpo a corpo, de mente a mente, gerando adesão, atrito e eletricidade .
Não se fazem mais filmes como "Terra em Transe", se é que filmes como "Terra em Transe" alguma vez poderiam ser feitos, senão pelo autor, essa singularíssima pessoa.
Não se fazem, contudo, mais filmes assim sem concessões -e ainda que possam ser feitos, neles raramente veremos a inteligência e a empolgante força criativa que Glauber Rocha imprimiu em sua obra.
Rejeitado pelo Partido Comunista, intragável para o espectador burguês, "Terra em Transe" nem por isso deixou de despertar admirações entre aqueles -de "direita", "esquerda", "formalistas" ou "realistas"- que sabem quando estão diante de uma grande obra. "Genial!", exclamou Nelson Rodrigues, usando a expressão que depois tornar-se-ia caricata pela repetição mecânica das platéias convertidas.
"Terra em Transe" não se preocupa em poupar ninguém, do militante de esquerda à burguesia nacional, passando pelo próprio povo.
Expõe implacavelmente as fraturas da crise do populismo e as ambiguidades da intelectualidade. Ironiza a crença no poder da palavra (tínhamos uma "esquerda literária", como a caracterizou, depois, José Celso Martinez Correa) e termina, profeticamente, anunciando a radicalização da luta armada.
Convencionou-se, com a redemocratização, a quebra do sistema socialista e o desenho de uma nova economia global, considerar filmes como "Terra em Transe" dinossauros de um passado remoto, que nada mais têm a nos dizer.
Não é a impressão que fica ao vê-lo 31 anos depois.

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