São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998
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Morte prolongada

MARILENE FELINTO

A paz, nesse caso, é a destruição, dizia Quincas Borba. "Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos."
As duas tribos não podiam dividir em paz as batatas do campo: as batatas davam apenas para alimentar uma das tribos; se insistissem na divisão, ambas morreriam por insuficiência de alimentos, por inanição.
"Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas." Esse pensamento, do genial Quincas Borba de Machado de Assis, citado e recitado, pisado e repisado até virar clichê, é a mais oportuna definição das oitavas-de-final, das quartas, das semifinais, de todos os finais.
Os indivíduos são bolhas transitórias, dizia Quincas Borba. Bolhas que se fazem e se desfazem de contínuo na água que ferve, mas que -pouco importa- ficarão todas na mesma água.
"Morto estava sentado em frente à TV havia 4 anos". Essa notícia me deram hoje. Saiu no jornal "Berliner Morgenpost". Perdeu tudo. O vencido. Atravessou de um tempo a outro, de uma à outra Copa do Mundo de futebol. Nunca soube do resultado dos jogos fatais, entre Brasil e Chile, entre seu time e outro qualquer.
Era um provável torcedor de futebol. Esteve quatro anos sentado em frente à TV, assistindo ao mais longo jogo de sua vida. Antes da partida, saíra a caminhar sozinho pelas ruas de Pigalle, bairro de boemia e sexo em Paris. Passou pelo lendário moinho do Moulin Rouge, a famosa casa de espetáculos de um passado que ele desconhecia. A vida e Paris pareciam uma lenda sem sentido.
Como Paris era a cidade das luzes, aquele excesso de beleza e chispas iluminava impiedosamente sua solidão. Todo mundo via. Então ele voltou para o quarto, no último piso de um edifício desabitado. Pelo menos ali a única luz da lua espalhava-se pelo assoalho como companhia.
A lua não sabe escarnecer, dizia Quincas Borba. "E os poetas, que a acham saudosa, terão percebido que ela amou outrora algum astro vagabundo, que a deixou ao cabo de muitos séculos."
Depois, a lua é solitária, dizia Quincas Borba. "A noite, mãe caritativa, faz velar a todos." O torcedor solitário ligou a televisão, preparado para assistir ao jogo do Brasil contra o Chile. Morreu sentado ali, sem nunca ter sabido do resultado, sozinho como uma pedra, frio como uma solidão.
A verdadeira história do homem encontrado morto diante da TV saiu mesmo no "Berliner Morgenpost": foi achado em Brandemburgo e esteve sentado durante quatro anos em uma poltrona na frente da televisão, sem que ninguém soubesse de seu falecimento. O cadáver mumificado foi descoberto por acaso num apartamento do último piso de um edifício desabitado.
Em 1994, o fornecimento de luz elétrica foi cortado por falta de pagamento. O apartamento foi declarado vazio quando o dono deixou de receber o aluguel. Mas o inquilino tinha ficado lá, só, bolha, sem luz, sem batata.

E-mail: mfelinto@uol.com.br

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