São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998
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UM DÍNAMO EM MOVIMENTO

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Estou ansioso por verificar, pessoalmente, se a morte é vírgula, ponto e vírgula ou ponto final." Monteiro Lobato, em 1948, segundo Edgard Cavalheiro.

Lobato posava de libertador do povo, mas, no entanto, era injusto e impiedoso para com esse povo

Ao descrever os últimos dias de vida de Monteiro Lobato, Edgard Cavalheiro, seu admirador e primeiro biógrafo, conta que o escritor encarava o fim próximo com humor e coragem. Em 21 de abril de 1948, tinha sofrido um espasmo vascular cerebral. O cérebro de Lobato fora atingido, informam os autores de "Furacão na Botocúndia", em duas funções que eram nele muito desenvolvidas: a leitura e a escrita. O escritor repentinamente ágrafo perguntava aos íntimos: "Como é possível que eu não saiba o que está escrito nesse livro?". Há 50 anos, diante da morte iminente, os olhinhos vivos e inquietos do escritor, emoldurados por cerradas e negras sobrancelhas, pulavam das órbitas e dançavam no ar, substituindo o silêncio do corpo doente pelo trasbordamento duma inquietadora vida espiritual.
Lobato, recordemos, não aspergia água benta na morte. Essa atitude sua já está clara no conto "Bocatorta", primeiro escrito pelo autor, como está dito em "Furacão na Botocúndia". Posteriormente incluído em "Urupês", "Bocatorta" é a versão cabocla e anunciada do clássico norte-americano "King Kong" e do filme francês "A Bela e a Fera". Um negro mísero, disforme e horripilante, um Quasímodo alforriado, se apaixona pela bela e distante filha do fazendeiro. Não podendo demonstrar o amor sublime e satisfazer os desejos hediondos, a figura monstruosa persegue a moça com os olhos durante o dia e, à noite, se intromete nos sonhos dela. Morta de estranha e compreensível doença, a virgem é enterrada pelos pais e o noivo. Altas horas da noite, o negro profana o túmulo e se abraça à moça branca, beijando-a. O narrador do conto descreve o quadro macabro: "Um corpo branco jazia fora do túmulo -abraçado por um vulto vivo, negro e coleante como o polvo". Vida, amor e morte se entrelaçam conflituosamente, como numa escultura decadentista.
Desde jovem, graças a sua incontrolável bisbilhotice, Lobato já sabia, e muito, sobre a morte humana. Seu lema de escritor está expresso numa de suas narrativas curtas: "Contos andam aí aos pontapés, a questão é saber apanhá-los". A predisposição do escritor levou-o a querer triunfar na literatura brasileira, passando adiante causos engraçados, espantosos, doloridos e amorosos, narrados em primeira mão pela gente simples com quem convivia. Nas anedotas que "apanha" para narrar, sobressaem intrigas corriqueiras em que vida e amor se tecem com vistas ao encontro fatal dos personagens com a mais indesejada das gentes. Desde cedo, Lobato foi-se familiarizando com o gosto amargo da morte sem o ter verdadeiramente provado. Experimentava-o, abrindo os ouvidos e anotando essas estórias extraordinárias, "que têm força de ímã", como afirmava.
Não fosse o conselho pouco sábio do médico e sanitarista baiano Artur Neiva, "Urupês", a sua primeira e mais famosa coleção de contos, teria se chamado "Doze Mortes Trágicas", título mais sugestivo e apropriado que o definitivo. Por infeliz idéia do amigo, Lobato abandona a "morte trágica" como fio condutor da leitura dos 12 contos de estréia, para acatar a denominação metafórica do etos caboclo. "Sombrio urupê de pau podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas" -eis o modo como já caracterizava na época o seu futuro personagem-tipo, Jeca Tatu. Lobato é obsessivo e, por isso, reincidente.
No livro seguinte, abandona o conselho desastrado do amigo, para adentrar-se pelos labirintos das cidades fantasmas do interior paulista. O autor não titubeia dessa vez. Dá ao novo livro o título justo e apropriado: "Cidades Mortas". Comunidades outrora ricas, lépidas e prósperas que, no momento de transição do Segundo Reinado para a República, se desfaziam no chão como madeira tomada pelo cupim. O olhar aparentemente objetivo do narrador, na verdade causticamente enamorado da decadência e do progresso, detém-se na descrição pormenorizada dos casarões em ruínas "que lembram ossaturas de megatérios onde as carnes, o sangue, a vida, para sempre refugiram".
A pena do escritor, de posse de abundante, extravagante e multicolorido vocabulário, passeia pela morte das casas-grandes como se estivesse conversando com um companheiro de aventuras. No conto "Os Negros", é passional a descrição da decrepitude da casa-grande: "Paredes lagarteadas de rachas, escorridas de goteiras, com vagos vestígios de papel. Móveis desaparelhados -duas cadeiras Luís 15, de palmilha rota, e mesa de centro do mesmo estilo, com o mármore sujo pelo guano do morcego". E acrescenta o personagem: "Macacos me lambam se isto aqui não é o quartel-general de todos os ratos de asas deste e dos mundos vizinhos!".
Obsessivo e reincidente, já tocado pelo prazer mórbido proporcionado pela experiência frequente da morte, Lobato se dedica a pintar o majestoso cenário fúnebre onde foram fincadas as cidades-fantasma e por onde transitam os fazendeiros e caboclos. O fogo foi tomando conta das matas do país, recobrindo-as de "crepe negro". Ao simples riscar dum pau de fósforo, a natureza sedenta de chuva arde em chamas e passa a liderar o cortejo fúnebre da flora e da fauna em próxima extinção. Tomando de empréstimo imagens bélicas que lhe eram sopradas da Europa pelas proezas incendiárias dos "vons" alemães (o texto é escrito logo no início da Primeira Grande Guerra), Lobato denuncia as queimadas anuais que se alastram furiosas e impunes pela serra da Mantiqueira. Ela arde do mesmo modo como ardem as aldeias na Europa.
A queima das matas, a morte da natureza. A Mantiqueira, denuncia ele, é "hoje um cinzeiro imenso". Anota o patriota: "As velhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrógrado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes...". Não custa lembrar. A meia dúzia de Neros de pé-no-chão, de que falava Lobato no início do século, se multiplicaram neste fim de milênio, incendiando a outrora longínqua região de Roraima.
Não é de estranhar, pois, que o escritor paulista, devido à familiaridade que desde cedo manteve com a morte, exercitasse nos últimos dias de vida o sadio humor, e também o humor negro, entregando-se a blagues sobre a doença e a condição em que ela o tinha deixado. Chegado é o momento. Vai tentar -acredita ele, recolhido aos seus aposentos- outras experiências, vai aprender novas coisas. No conto "Os Pequeninos", incluído em "Negrinha", o personagem se sente aprendiz da dolorosa vida sangrenta dos animais selvagens por ter calado a voz interior, que lhe ditava tolas lembranças do passado, e ter aberto o ouvido agudo e curiosíssimo para ouvir as peripécias duma estória original contada por um desconhecido.
O causo alheio, ouvido à sorrelfa no cais do porto, parece bem mais interessante a esse personagem do que as caraminholas subjetivas a que a imaginação do escritor costumeiramente se entrega. Diz o personagem: "Uma das interrupções (nas minhas lembranças) me pareceu mais interessante que a evocação do passado, porque a vida exterior é mais viva do que a interior...". Introjetada na memória viciada do escritor, a anedota alheia reganha linguagem castiça e estilo, é divulgada aos quatro cantos pela imprensa. Ao mesmo tempo, perde a autenticidade e a naturalidade originárias. O causo alheio, a partir do momento em que é trabalhado pelo espírito criativo do ficcionista, ao virar conto, entra num jogo de perde-ganha. O texto literário assinado Lobato é menos interessante do que as circunstâncias que o geraram e o tornaram possível.
Para Guimarães Rosa -lembremos os prefácios de "Tutaméia"-, a anedota é como um fósforo: depois de riscado, depois de deflagrada, perde a serventia. Mas muita atenção!, acrescenta Rosa, pois ela ganha outra e mais severa serventia. No universo ficcional de "Tutaméia", a anedota, mesmo deflagrada, serve de apoio "nos tratos da poesia e da transcendência". Lobato concorda apenas com a primeira parte do raciocínio roseano. Ganha-se um conto e se atropela uma forma de narrar. Depois de deflagrado, Lobato apanha o caso, estiliza-o, porque, se não o estilizar, não escreve contos nem publica livros.
Mas o presuntivo autor é decididamente contra a estilização. Esclarece o narrador do conto "Mata-Pau": "O camarada contou a história que para aqui traslado com a possível fidelidade. O melhor dela evaporou-se, a frescura, o correntio, a ingenuidade de um caso narrado por quem nunca aprendeu a colocação dos pronomes e por isso mesmo narra melhor que quantos por aí sorvem literaturas inteiras, e gramáticas, na ânsia de adquirir estilo". E conclui: "Grandes folhetinistas andam por este mundo de Deus perdidos na gente do campo, ingramaticalíssima, porém pitoresca no dizer como ninguém". Havia também esclarecido noutro conto: "Não reproduzo suas palavras da maneira como (o folhetinista anônimo) as enunciou. Seria impossível, sobre nocivo à compreensão de quem lê".
Lobato deprecia a tal ponto a estilização literária que o editor das suas obras faz questão de transmitir aos pósteros uma frase recorrente na boca do contista. Ele teria dito e repetido: "O meu melhor livro seria o em que eu contasse como e porque escrevi meus contos, um por um; a história deles é melhor que eles".
Em Lobato, a subjetividade criadora conta pouco; conta mais o gesto de "apanhar" a estória alheia, típico de escritor que é um terço viajante, outro terço detetive e, finalmente, civilizador. O complexo processo de interiorização do causo e a sua expressão pela linguagem literária é minimizado pelo autor no desejo de engrandecer as circunstâncias exteriores. Rebaixado o produto artístico em si, pouco interessou a Lobato o próprio fazer ficcional, a psicologia da composição literária. Suas divagações por assim dizer poéticas seguem de perto a lição da geração de 70, de Sílvio Romero e José Veríssimo, e se resumem à crítica das idealizações nacionalistas feitas pela literatura romântica.
Em página bastante conhecida sobre a expressão literária da nacionalidade, Lobato substitui o índio pelo caboclo. A simplicidade no raciocínio evolutivo é tão grande que parece estarmos diante de uma errata pouco pensante. Escreve Lobato: "O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; a ocara virou rancho de sapé; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada..." -e assim continua a enumeração. Em "A Criação do Estilo" volta ao cacoete. Propõe que faunos, sátiros e bacantes, frutos do imaginário europeu, sejam substituídos pelas nossas iaras e marabás. Novamente dá uma sova nos romancistas românticos em "Cidades Mortas". Dessa feita escolhe Bernardo Guimarães para judas: "Lê-lo é ir para o mato, para a roça -mas uma roça adjetivada por menina do Sion, onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes..." -e assim por diante.
Rebaixado o valor literário do próprio conto, interessa mais a Lobato o provável consumidor do produto. Interessa-lhe uma outra circunstância exterior e imprevisível -o diálogo do livro com o leitor.
Livros existem para ser lidos, eis a pequena grande descoberta de Lobato num país de analfabetos. O conto "Facada Imortal", verdadeira obra-prima, foi escrito por motivos sentimentais. Teria sido mais correto escrever, em lugar do conto, as circunstâncias que o levaram a ser escrito.
Tendo como personagem principal o amigo Raul, "Facada Imortal" foi também escrito para ele. Quando o escritor se depara com o corpo do amigo tomado por doença terminal, quer amenizar suas dores. Como? Inventando um causo em que o próprio doente seria personagem. A leitura do conto acabou por servir, lê-se na nota do editor, "como a melhor injeção de morfina que lhe proporcionaram". Contos ajudam os amigos a suportar as dores da morte, acreditava Lobato.
Talvez seja por essas e semelhantes razões que o editor e divulgador de livros Lobato, tão presente na série dos substantivos artigos colecionados sob o título de "Opiniões", conte mais do que o escritor, conte mais do que o bisbilhoteiro incurável. Mas as motivações para a escrita e a leitura do conto não são sempre as ditadas pela caridade cristã e os bons sentimentos fraternos. Edgard Cavalheiro chama corajosamente a atenção para o fato de que a criação genial do Jeca Tatu pode ser dada como "vingança do fazendeiro fracassado". Contos ajudam a nos vingar de pequenos e miseráveis desafetos, acreditava Lobato.
Sérgio Milliet finca com maior precisão o punhal na ferida. Afirma ele que "o Jeca Tatu é quase uma vingança pessoal; é o caboclo visto com o olhar azedo do fazendeiro malogrado". Jeca Tatu foi escrito por fazendeiro para agregados, isto é, para ser lido por aqueles que julgava serem os jecas-tatus da vida. Não é por acaso que, até 1982, as edições do Jeca Tatuzinho, financiadas pelo Laboratório Fontoura, tenham ultrapassado a marca dos 100 milhões de exemplares. Deve ser o best seller dos best sellers brasileiros. Por tudo isso, Milliet detecta nos contos satíricos de Lobato menos humor e mais sarcasmo. Explica o crítico: "O humor, já o disse um conhecedor, jorra da ternura e do pudor dos tímidos. É uma compensação. Ao passo que o sarcasmo é uma transferência do espírito de revolta. É com o sarcasmo que o intelectual se vinga dos outros; é pelo humor que ele se castiga a si próprio".
Monteiro Lobato era muito cônscio do próprio valor e do valor do seu legado. No momento em que um espasmo vascular cerebral o aproxima do acerto de contas com a morte, entre uma e outra blague, dessas que servem para afastar da imaginação as lembranças do passado, Lobato soltou uma frase que o biógrafo e admirador apressou em copiar. Disse que estava ansioso "por verificar, pessoalmente, se a morte era vírgula, ponto-e-vírgula ou ponto final".
Aparentemente um mero gracejo de velho bisbilhoteiro e rabugento, a frase acima citada retoma a idéia obsessiva que vimos salientando nesta leitura das obras literárias para adultos de Monteiro Lobato. Homem pragmático, queria saber o valor e o peso da vida e da obra, já. A morte é o único metro e, por isso, o padrão verdadeiro para medir e avaliar a vida no planeta Terra, seja ela a do homem, do vegetal ou do animal. É ela também o verdadeiro padrão que serve para medir e avaliar as obras do homem. Durante a atribulada vida, Lobato acabou se familiarizando com a morte graças a inúmeros e interpostos personagens e situações que abundam nos seus contos e impressões ficcionais. Isso não era suficiente.
Tomado passageiramente pela agrafia, quer ouvir a fala de além-túmulo. Quer conhecer pessoalmente a morte. Quer conhecer nova balança, pesos e medidas. Não é no jogo da antítese morte/vida, antítese sempre mediatizada pelo amor, que estaria a verdade sobre uma vida? Sobre uma obra artística? No já citado e célebre conto "Facada Imortal", o narrador pergunta: "Que é o conto senão uma antítese estilizada?". No conto que dedica a Maupassant, em "Urupês", ao aclarar os princípios da arte ficcional do escritor francês, Lobato declara com as mesmas palavras o norte da sua arte ficcional: "Porque a vida é amor e morte, e a arte de Maupassant é nove em dez um enquadramento engenhoso do amor e da morte". Lembremos uma vez mais que o título original de "Urupês" era "Doze Mortes Trágicas".
O metro que escolheu para medir vida e obra, Lobato tomou-o de empréstimo ao padrão gramatical, que aprendeu para construir as frases barrocas, metafóricas, afirmativas, tonitruantes. Uma parada pode ter pouca importância -a frase se prolonga incisiva depois de uma vírgula. Uma parada pode ser um tropeço passageiro, serve para deixar a frase respirar, ganhar galeio e se prolongar-, a frase continua robustecida depois de um ponto-e-vírgula. Uma parada definitiva pode acontecer-eis a fatalidade de um ponto final. É pela frase que escutou como bisbilhoteiro, anotou como antropólogo, escreveu e remendou como ficcionista, burilou e publicou em letra de forma para virar escritor, é pela frase trabalhada e rebelde, dinamite pura, que Lobato quer ser julgado pelos cidadãos e pela crítica.
A vida e obra de Monteiro Lobato desapareceriam definitivamente como desapareceram o Bocatorta, as cidades fantasmas e a serra da Mantiqueira? Ou durante alguns poucos anos encontrariam abrigo em algumas poucas palavras generosas? Ou ganhariam a notoriedade e a consagração post-mortem, concedidas por muitas e repetidas palavras elogiosas, proferidas em cinquentenários, centenários?
Um dos seus mais lúcidos e impiedosos críticos, Sérgio Milliet, formulou precocemente a pergunta sobre o legado de Monteiro Lobato e a respondeu quatro anos antes da morte do autor, no dia 30 de setembro de 1944. No segundo volume do "Diário Crítico", lemos que Lobato "passará pelo crivo das revisões impiedosas e ainda encontrará entusiasmos alucinados. Do barulho sairá para as antologias uma dúzia de contos modelares. E mais boa parte de sua literatura infantil, que só encontra paralelo nas grandes literaturas infantis internacionais".
Avesso à indolência tropical, francamente a favor tanto do trabalho que dá alma ao homem e constrói líderes carismáticos, quanto da evolução da ciência que traz o progresso para a nação e das técnicas que propiciam o bem-estar dos cidadãos, tocou a Lobato começar a vida profissional numa época de "bestializados". O país estava entregue ao total abandono moral e cívico, de que são exemplo na nossa literatura as obras nitidamente pessimistas e amargas de Affonso Arinos, Euclides da Cunha e Lima Barreto. Na República Velha, são eles os "enquadradores engenhosos do amor e da morte".
Na descoberta precoce do movimento que gera os conflitos da "antítese estilizada" talvez esteja aí uma das razões pelas quais Lobato tenha sido sempre tão sensível e pouco paciente diante de qualquer parada (ou de qualquer abandono, de qualquer paralisia, ou de qualquer "caquexia", para usar o seu vocabulário precioso, tão fora de moda na estética minimalista hoje dominante).
"O nosso progresso", escreveu ele em "Cidades Mortas", "é nômade e sujeito a paralisias súbitas". E continua: "Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas". Em livro posterior, acrescentará: "Tudo por aqui é emergência, isto é, solução pessoal, ocasional, momentânea, provisória". Lobato busca e sempre buscou o significado preciso de qualquer parada, de qualquer abandono, de qualquer paralisia, para melhor criticá-los. Valia-se, para tal, do metro da vida, vale dizer, quer salientar as razões para o atraso do país. Foi um lutador que, pelo uso fácil e desabusado da palavra brutal e inesperada, levantou frentes de rebeldia, angariando com isso a antipatia do mundo oficial da República Velha, da Nova República e do Estado Novo.
Dono de uma linguagem elaborada e senhor de grande erudição, como pôde Monteiro Lobato ter chegado a diagnósticos tão simplistas e tão abrangentes sobre a realidade cultural, social e econômica brasileira? O pano de fundo para a resposta a essa pergunta está no pessimismo aristocrático, cheio de boas intenções, que Monteiro Lobato, à semelhança do Paulo Prado, autor do "Retrato do Brasil", cultivava diante da nossa trôpega formação étnica. O colorido definitivo desse cenário aristocrático está no dito, quase provérbio, que se encontra em "Mr. Slang e o Brasil": "Grão de bico, pacova e quimbombô só podem pensar os frutos que pensam...".
O português com o grão-de-bico, o índio com a banana e o negro com o quiabo deram na nossa terra os frutos que podiam ter dado. Nesse cenário tropicalista avant la lettre, Monteiro Lobato se instala como um escritor, dublê de médico, de sanitarista, de biólogo, de pregador bíblico e de economista.
Aos "technical experts" desta ou daquela disciplina, ele opõe o bom senso do caixeirinho de armazém, desde que instruído pela cartilha de Henry Ford. Na combinação do conhecimento enciclopédico do generalista, imbuído do pessimismo patriótico, com o bom senso do caixeirinho do armazém, ingênuo mas direcionado pela ideologia do progresso individual pelo trabalho, é que Lobato consegue diagnosticar com imprecisão de detalhes os nossos grandes males. Com o espírito do generalista e do caixeirinho, ele detecta as causas simples para as doenças das nossa civilização tropical (causas ditas complexas pelo Estado burro e corrupto -leia-se o conto "Um Suplício Moderno"- e pela elite embusteira) e procura saneá-las com o proselitismo de pregador evangélico.
O generalista retira do bolso o receituário e entrega a receita para o caixeirinho aviar. O primeiro é capaz de prescrever, para cada mal diagnosticado, o remédio perfeito e eficiente, e o segundo é capaz de aplicar as injeções milagrosas, estabelecendo novas diretrizes para o desenvolvimento e o progresso que retirariam país e cidadãos da paralisia asfixiante. A simplicidade na análise, repitamos, é amiga da visão abrangente e também dos remédios milagrosos.
Havia latente no primeiro e segundo Lobatos um "fordismo" que se tornou evidente e publicitário a partir da sua viagem aos Estados Unidos em fins da década de 20. Escreve ele em "Mr. Slang e o Brasil": "Depois que Henry Ford demonstrou como se aproveitam até cegos e aleijados, ninguém tem o direito de alegar o não presta. Tudo presta. Até um cego, um estropiado presta. A questão toda está em proporcionar-lhes condições para prestar" (grifo de Lobato).
A antiga e definitiva batalha de Lobato, e a que lhe rendeu a fama precoce, foi a de querer proporcionar condições para que o parasita Jeca Tatu prestasse. Para se chegar ao diagnóstico sobre o atraso do Jeca Tatu, o "médico" neutralizou os efeitos nocivos causados por ele e seus pares na constituição do miserável objeto de estudo e, por isso, Lobato posava de libertador do povo e, no entanto, era injusto e impiedoso para com esse povo. Lobato se esqueceu de que ele e demais latifundiários amigos eram os verdadeiros parasitas dos antepassados dos atuais agregados, como o tinham sido dos velhos escravos. É na condição de também parasita que competia a ele diagnosticar os males do caboclo-parasita. Os defeitos do explorador do trabalho alheio (do latifundiário) se escondem para que mais salientem a indolência do explorado (do caboclo).
O caboclo vivia -se se pode chamar a isso de vida- como um parasita da terra, afirma o Lobato fazendeiro. Ele se apresentava aos seus olhos como "um piolho da terra", em tudo semelhante ao "Argas" (que ataca as galinhas) e ao "Sarcoptes mutans" (que ataca as pernas das aves domésticas). Era um depredador, solto no espaço social, como certos monstros nos filmes mais recentes da ficção científica hollywoodiana. Ele é, como se diz hoje, do mal. É contra a vida. Como o mata-pau, o caboclo é um parasita que destrói a vida. "A árvore morre e deixa dentro dele (do mata-pau, do parasita) a lenha podre." Acaba com a boa semente.
O caboclo é "natural dos trópicos", é tão selvagem quanto a natureza que o formou, por isso um é cópia do outro. Não há uma História que conte a luta dos "parasitados" contra a natureza tropical e contra os poderosos que os descobrem tardiamente na condição de parasitas. Todos os caboclos são parasitas e bandidos. É preciso exterminar a raça dos vilões intestinos. "A higiene, eis o segredo da vitória", repete Lobato. Tarefa para sanitaristas, Lobato deles se aproxima. Benéfica e patriótica tarefa, sem dúvida, e daí?
São inúmeras as versões literárias que Lobato nos dá dos males do miserável parasitismo brasileiro, versões elaboradas e sempre cercadas pelo conhecimento enciclopédico do generalista, tomadas que são da biologia e da zoologia. O exemplo clássico, objeto de conto em "Urupês", encontra-se na árvore que mata outra, o mata-pau, cuja imagem habilmente desenhada pelo escritor circula em belas reproduções pelos seus livros (ler "Furacão na Botocúndia", pág. 85). Diante do mata-pau, a imaginação do narrador só não pensa em si, pensa na literatura. Nesta descobre "as serpentes de Laocoonte, a víbora aquecida no seio do homem da fábula, as filhas do rei Lear, todas as figuras clássicas da ingratidão".
Encontra-se outro exemplo de parasita nas constantes referências ao pássaro conhecido como chupim. O mais perturbador dos exemplos de parasita está, sem dúvida, no conto "Os Pequeninos". O pequeno periperi descobre e ataca sem piedade o ponto fraco da grande ema. Ele se instala debaixo da asa, de onde não consegue ser retirado pela ema. A ema fica girando como uma louca enobrecida pela dor, sem nunca conseguir se livrar do sanguessuga. O parasita tem moral darwiniana, ele será forte, matando a ema. Esqueçamos as boas intenções na leitura desse apólogo. Quem é a ema? Quem é o parasita? Por que são os "pequeninos" demoníacos e a ema, nobre?
Transferindo a temática dos contos caboclos para o mundo urbano, Lobato empresta de novo ao parasitismo imagens biológicas e cria novos personagens. Em "O Fisco", incluído na coletânea "Negrinha", o narrador elabora sucessivas comparações entre o organismo humano e a vida na cidade. A rua é a artéria; os passantes, o sangue. O desordeiro, o bêbado e o gatuno são os micróbios maléficos, perturbadores do ritmo circulatório determinado pelo trabalho, em particular dos imigrantes italianos. O soldado de polícia é o glóbulo branco -o "fagocito" de Metchenikoff.
E continua o conto: "Mal se congestiona o tráfego pela ação anti-social do desordeiro, o fagocito move-se, caminha, corre, cai a fundo sobre o mau elemento e arrasta-o para o xadrez". O combate ao parasitismo urbano desenha uma Paulicéia repressiva, pujante e ordeira, apenas perturbada agora pelas restrições nocivas do Estado à livre iniciativa, que aparecem sob a forma do "fisco corrupto" (ver "Da Camisola de Força", em "Mr. Slang e o Brasil").
Roberto Ventura, em capítulo notável do livro "Estilo Tropical", mostrou como Manuel Bonfim, embora concebesse a sociedade como organismo, procurou também investigar as leis não-biológicas, específicas aos fatos sociais. Em lugar de estabelecer homologias simples entre o conhecimento biológico e o conhecimento social -como é o caso de Monteiro Lobato, acrescentamos nós (1)-, delimitou a diferença entre as duas áreas. Manuel Bonfim tomava de empréstimo conceitos da biologia e da zoologia, mas precisava com nitidez a validade da transferência dos conceitos científicos para a análise do campo social. Portanto, há que tomar cuidado na análise do conceito de parasitismo em Manuel Bonfim e Monteiro Lobato.
Na passagem de Bonfim para Lobato há um emburguesamento, um empobrecimento teórico na rentabilidade dos esquemas homológicos como passíveis de serem ferramentas explicadoras da realidade social do país e do mundo ocidental. Em Bonfim, o esquema do parasita e parasitados na natureza serviria para explicar, na sociedade, dominantes e dominados, senhores e escravos, capital e trabalho, metrópole e colônia, imperialismo e nacionalismo. Passo mais importante dá Bonfim ao recusar a homologia entre a biologia e a sociedade.
Agindo dessa forma, escreve Roberto Ventura, o ensaísta conseguiu estabelecer "as diferenças entre o parasitismo 'orgânico', que traria modificações irreversíveis nos organismos, e o 'social', que poderia ser extirpado pelos parasitados -o escravo, o trabalhador, o proletário, a nação- por meio da luta contra as diversas formas de exploração". É dessa forma, continua Ventura, que Bonfim escapa ao pessimismo e ao determinismo das teorias do meio, da raça e do caráter nacional brasileiro.
Antonio Candido, em sucinto e definitivo artigo sobre Manuel Bonfim, complementa as palavras de Roberto Ventura, assinalando que o parasitismo, dado em "A América Latina" como "mal de origem", mostra como o parasita, vivendo à custa da exploração completa do parasitado, acaba incapaz de sobreviver sem ele, degrada-se ele próprio e cai, dando lugar a novos elementos dirigentes. Conclui Candido: "Deste modo se mantém a continuidade da estrutura na mudança dos agentes e nunca se criam as condições para o trabalho realmente livre, que permite o bem-estar e o equilíbrio social".

Nota
1. Veja, como exemplo, esta passagem: "A humanidade somente progride dentro do respeito às leis biológicas. A concorrência é a lei biológica do progresso".

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