São Paulo, sábado, 11 de julho de 1998
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Economia da felicidade

ILANA GOLDSTEIN

Pierre Bourdieu é, hoje, um dos sociólogos mais conhecidos do mundo. Devido à diversidade de domínios de pesquisa a que se dedicou, a influência de sua obra se faz sentir em diversas disciplinas e vários continentes.
Em linhas gerais, Bourdieu substitui a concepção de sociedade pela de "campos" sociais, esferas relativamente autônomas, com valores particulares e princípios próprios de regulação. Cada "campo" -campo da arte, intelectual, da moda etc.- consiste num espaço de conflitos e concorrência por posições. Pretende superar a oposição entre indivíduo e sociedade e, para tanto, se utiliza de um outro conceito-chave: "Habitus", o conjunto de disposições subjetivas que, na realidade, são uma versão incorporada de estruturas dadas objetivamente. O que um agente social veste, come ou aprecia esteticamente está diretamente ligado à posição que ele ocupa em determinado campo -e à necessidade de perpetuar ou questionar sistemas de classificação.
O mais importante, neste novo livro de Bourdieu, é recuperar o papel que sempre atribuiu ao sociólogo: transformar o olhar por meio do qual o mundo social é apreendido, desnaturalizando o que foi construído historicamente. Seu principal objetivo em "Contre-Feux" é destruir a aparência de unanimidade sobre o neoliberalismo e sua força simbólica. O efeito de crença partilhada -devido ao coro uníssono da imprensa, de técnicos da economia, das empresas e de uma parcela dos intelectuais- deixa fora de discussão teses muito discutíveis.
Por exemplo, a de que o Estado do Bem-Estar é um entrave e deve ser desmontado. O intuito do autor já está sugerido no título: "Contre-Feux", em francês, é uma técnica de contenção de incêndios, em que se queima voluntariamente uma faixa estratégica da floresta, para que, quando o fogo chegar à faixa vazia, não haja mais o que queimar e as chamas se apaguem automaticamente. É uma tática realista e refletida: de defesa, e não de ataque.
Não por acaso, "Contre-Feux" tem o formato de um panfleto político: pequeno, retangular, página estreita, de fácil leitura. Compila artigos escritos para os jornais "Le Monde" e "Libération", bem como pronunciamentos em reuniões de intelectuais, greves e manifestações -todos na década de 90. O autor se confessa movido por um "furor legítimo" e descreve o "sentimento de escândalo" que experimenta, ao se deparar com aqueles que chamam de "privilégios" direitos sociais conquistados com lutas. Para problematizar o consenso internacional em torno das "reformas" -ou retrocessos- neoliberais, lança mão de duas armas principais: a desmontagem do discurso neoliberal e a crítica aos valores que o sustentam.
Observa que a imprensa francesa costuma substituir o termo "patronato" por "forças vivas da nação", que, em vez de "demissão", fala em "enxugamento" ou "otimização" -dando a idéia de algo saudável e progressivo. Aponta que o empresariado esconde, sob o termo "flexibilização", o sonho de qualquer empregador: trabalho noturno e nos fins-de-semana, jornadas irregulares, férias não-remuneradas, a multiplicação de empregos precários e mal-pagos. Ataca a versão do individualismo que acaba com as noções de responsabilidade pública e interesse coletivo. A "lei do mais forte" e a crença no sucesso dos competentes seriam maneiras cruéis de abandonar "vítimas sociais" à sua própria sorte, como se fossem sempre culpadas por suas dificuldades.
Desempregados são considerados incapazes e aqueles que têm emprego aceitam quaisquer condições, abrindo mão da segurança mínima que o trabalho trazia às pessoas até a década de 80 -tão importante quanto o pagamento.
Para o sociólogo francês, é necessário combater a tecnocracia econômica, trazendo à tona o conhecimento dos homens, de seu cotidiano e de seus sofrimentos. Mostrar que não é possível efetuar um corte tão profundo entre a dimensão econômica e a social. Naquele que talvez seja o artigo-tese do livro, e que é a transcrição de uma intervenção de Bourdieu na Confederação de Trabalhadores Gregos, em 1996, proclama: "Seria preciso que todas as forças sociais críticas insistissem na incorporação, aos cálculos econômicos, dos custos sociais das decisões econômicas. O que custará a longo prazo em termos de demissões, sofrimentos, doenças, suicídios".
Propõe a substituição da "economia de visão curta" pela "economia da felicidade" e a criação de instituições supranacionais que controlem as forças do mercado financeiro.
Não há como não se pensar no Brasil, quando se lê, em relação a uma revolta de professores, que "o desprezo por uma função se marca em primeiro lugar pela remuneração irrisória a ela concedida". O desafio lançado por Bourdieu é a superação de uma aparente inevitabilidade histórica em que teríamos liberalismo ou barbárie. O livro traz também um convite aos intelectuais para que, em nome de seu saber específico, dialoguem permanentemente com outros setores da sociedade, principalmente sindicalistas e organizações de minorias.
"Contre-Feux" frustra quem esperava do sociólogo uma nova pesquisa de campo ou construtos formais elaborados. Mas é uma injeção de ânimo naqueles que andam resignados, quase aceitando o "fim da história" e a inexistência de brechas na atual conjuntura econômica e social.

Ilana Seltzer Goldstein é mestranda em antropologia social na USP.

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