São Paulo, sábado, 11 de julho de 1998
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Máfia dos remédios

RENAN CALHEIROS

A indignação suscitada pela curva ascendente das denúncias de falsificação de medicamentos em todo o país não poderia senão fortalecer a resolução governamental de investigar e punir esses atentados à vida, à saúde, à dignidade e à boa-fé do cidadão brasileiro.
Atuando em estreita cooperação com o Ministério da Saúde, a pasta que chefio impôs ao laboratório Schering a maior multa jamais aplicada na história das relações de consumo no Brasil (R$ 3 milhões), pela sucessão de omissões e negligências que derramaram no mercado todo um lote do anticoncepcional Microvlar contendo farinha de trigo em lugar do princípio ativo anunciado na fórmula.
Embora justas, urgentes e bem-vindas, essa e outras punições adotadas nos marcos administrativos e legais disponíveis até aqui não bastam para conter a maré montante de insensibilidade criminosa, responsável pela adulteração de 5% a 7% dos remédios vendidos no Brasil, por meio de expedientes diversos, tais como clonagem, manipulação, fraude e, principalmente, a tendência de muitos revendedores a "empurrar" para o consumidor produtos diferentes dos prescritos nas receitas médicas, o que eleva para 30% o índice de remédios falsificados consumidos no mundo, segundo os números da Organização Mundial da Saúde. Esse hediondo mercado clandestino brasileiro fatura entre US$ 500 milhões e US$ 700 milhões anualmente.
As medidas do governo também não repararão tragédias como a da menina de apenas 9 meses Ana Carla de Souza Nascimento, que morreu por infecção generalizada, em 25 de abril último, na Santa Casa de Valença (RJ), depois de tomar Trioxina falsificada durante dez dias. Ou a do aposentado Cyro Amâncio dos Santos, falecido há poucos dias em Belo Horizonte porque ingeriu, ao longo de cinco meses, doses falsas de Androcur para seu câncer de próstata. Ou a dos motoristas de caminhão covardemente assassinados nas estradas por quadrilhas de sequestradores de carga, que vendem uma carreta cheia de remédios aos falsários por R$ 600 mil.
Por isso, o Ministério da Justiça acaba de tomar um conjunto de medidas destinadas a pôr um ponto final nas atividades da máfia dos remédios. No âmbito da Polícia Federal, foi criada a Delegacia Especial de Prevenção e Repressão à Adulteração e Falsificação de Medicamentos. Repartição nacional, com jurisdição interestadual e ramificações nas superintendências da PF dos Estados em que se concentram os principais laboratórios e mercados consumidores, a nova delegacia fortalecerá a cooperação já em curso com a Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde e as delegacias especiais que começam a surgir no quadro das polícias civis estaduais, à luz do exemplo pioneiro do Rio de Janeiro.
A fim de estabelecer um canal permanente com a sociedade, também foi implantado o número 0800-61-0033 (Disque-Remédio Falso), com a missão de atender denúncias de infrações penais, uma vez que ao Departamento Nacional de Vigilância Sanitária compete a fiscalização e o controle dos medicamentos nos seus aspectos científicos, técnicos e industriais.
Em seus dois primeiros dias, o Disque-Remédio Falso recebeu cerca de 800 ligações, sendo que 20% tratavam de informações criminais. As demais, que tratavam de dúvidas sobre validade, embalagens, fórmulas e assim por diante, foram encaminhadas à Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde.
Finalmente, estou convencido de que o sucesso dessas iniciativas depende de uma atenção especial à dimensão "globalizada" do problema. Na próxima reunião dos ministros de Interior e Justiça de todo o Mercosul, proporei uma articulação dos países-membros para reprimir o contrabando de medicamentos e sua falsificação, como etapa preliminar de um acordo a ser negociado com a comunidade internacional em seu conjunto.
Devidamente secundadas pela lei que transformou a falsificação de remédios em crime hediondo (portanto inafiançável e com pena de reclusão de até 30 anos), todas essas iniciativas assegurarão à cidadania que, de hoje em diante, lugar de quem falsifica medicamentos ou vende remédios falsos não é atrás do balcão, mas atrás das grades.

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