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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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ARTES PLÁSTICAS

Elaborados com materiais insubmissos, iglus do italiano estão em exposição na Pinacoteca do Estado

Obra de Mario Merz busca esteios harmônicos

TIAGO MESQUITA
CRÍTICO DA FOLHA

Muitos intérpretes da obra de Mario Merz (1925-1989) já deram ênfase a um aspecto nômade na sua produção. Em geral, o destaque se baseia em similaridades anedóticas e temáticas. Como se o artista tomasse formas de um passado muito distante em contraste com o ritmo da vida moderna.
À maneira de ícones, seus iglus e desenhos de animais ancestrais atuariam como a reedição de um período em que a história ainda não tinha esse nome.
As obras se instalariam como choupanas no meio de um caminho, inscrevendo no museu uma certa ancestralidade simbólica que instituísse um diálogo entre temporalidades e hábitos de períodos distintos. É verdade que os trabalhos se aproximam destas referências tradicionais, e a proximidade das obras do espaço circundante estabelece uma relação virulenta entre um e outro.
No entanto, os iglus de Merz, acampados na Pinacoteca de São Paulo, parecem revelar virtualidades mais contemporâneas destas formas. Mais do que um caráter provisório, dado pelas condições duras de vida, o artista aponta para espaços difíceis de se formular.
Embora as pinturas sejam pobres e bastante simbólicas, reiterando este aspecto temático, nas obras espaciais, inorganicidade e dispersão formal se tornam uma questão poética de fôlego. Mais do que referências à vida tradicional, estes objetos aparecem como ajuntamentos de materiais ativos, que, em si mesmos, não guardam conteúdos simbólicos.
Os iglus se ajeitam no espaço com a precariedade de quem está sem eira nem beira. É certo que na Pinacoteca eles aparecem mais polidos do que o usual, mas a tentativa formal de buscar o mínimo de subordinação dos materiais é evidente. Os objetos são grandes e expansivos, compostos por grandes cacos e lâminas de vidro e pedra. Encostam-se numa estrutura circular e gradeada de ferro. Apóiam-se nela e nas morsas sem seguir o seu perímetro à risca, sem ordem predeterminada nem hora de acabar. E vidro se apóia em vidro, proliferando uma ordem estranha à linearidade do gradeado e à assepsia do espaço expositivo. No trabalho mais forte da mostra, "Movimentos da Terra e da Lua sobre um Eixo", dois iglus se irradiam centrifugamente até se tangenciarem.
O curioso é que uma das formas guarda outro iglu em seu interior. Esta peça de vidro tem caráter mais expansivo. Irradia-se pelo espaço e lança luz de tubos de néon do seu centro. O outro iglu maior, onde se apóiam as pedras, faz o movimento inverso, projetando sombra no seu interior. Um vai ao encontro do outro e ambos buscam ampliar o que guardam de brilho e de escuridão.
Curiosamente, quando ocupam o mesmo espaço, não entram em disputa e nem submetem um ao outro. Tentam, a partir da interseção, estabelecer harmonia. O que era para ser periférico ganha centralidade e exige um rearranjo dos esteios para acomodar estes materiais que se agrupam a esmo.
Merz busca esteios harmônicos antiautoritários diante da convivência de materiais irregulares e insubmissos. Ao mesmo tempo em que produz o acidente, contamina o espaço e o redescobre heterogêneo. Através de suas arestas, o lugar foge da monotonia.


Mario Merz
    
Onde: Pinacoteca do Estado (pça. da Luz, 2, Bom Retiro, tel. 229-9844)

Quando: de ter. a dom., das 10h às 17h30; até 23/3

Quanto: entrada franca



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