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CINEMA CRÍTICA
Sendo John Malkovich: o desejo em obra
GIOVANNA BARTUCCI
especial para a Folha
É possível compreender porque
"Being John Malkovich" (Sendo
John Malkovich, aqui chamado
"Quero Ser John Malkovich"),
primeiro longa de Spike Jonze,
premiado pela National Society of
Film Critics (EUA), tenha, nos últimos tempos, dividido a cena
com "Beleza Americana", vencedor do Oscar de melhor filme.
Se "Beleza Americana" é um filme simpático, bem dosado e
cheio de surpresas, mas que, no
entanto, se utiliza dos mesmos
meios que critica, "Being John
Malkovich" é justo o oposto.
Desconcertante, inusitado, engraçado, recebido como uma "comédia anárquica sobre fama e
identidade", este filme é, na verdade, tudo isto e algo mais: é um
escudeiro fiel do que chamamos
desejo, e será este "algo mais" que
nos interessará aqui.
Vejamos: Craig Schwartz (John
Cusack) é um marionetista incapaz de ganhar a vida com a própria arte, casado com Lotte (Cameron Diaz), mulher afetuosa e
desejosa de ter filhos, que, no entanto, dedica sua vida a cuidar de
animais. Maxine (Catherine Keener) é a colega de trabalho de
Craig na Lester Co., empresa sediada no 7º e meio andar de um
tradicional edifício nova-iorquino e por quem tanto Craig quanto
Lotte se apaixonarão. Será a pequena portinhola descoberta por
Craig que leva a quem quer que
seja para dentro do cérebro (ou
alma) de John Malkovich por 15
minutos e por apenas US$ 200
que subverterá a cena, reafirmando a persistência do desejo.
Assim, será esta pequena portinhola o que possibilitará a Lotte
ocupar o "corpo-receptáculo
John Malkovich" e descobrir que,
afinal, está enamorada de Maxine, com quem terá um caso.
E Craig, o que dizer deste marionetista "fracassado"? Pois sim,
se seu sintoma é sua incapacidade
de ganhar a vida com a própria
arte, será por meio do "corpo-receptáculo John Malkovich" que
Schwartz-Malkovich descobrirá a
fama e o reconhecimento como
marionetista. De quebra, casa-se
com Maxine, por sua vez enamorada de Lotte.
E Maxine? Maxine é a empresária deste marionetista-personagem Schwartz-Malkovich, por
meio de quem também descobre
fama e fortuna como empresária.
Afinal, se Craig controla Malkovich, Maxine controla Craig.
Mas, se é entre a plenitude da
experiência do sonho e a formação da alma que o desejo se insinua, será quando da constatação
de sua gravidez que o castelo de
Maxine, de fama e fortuna, desmorona. Se para Lotte ocupar o
"corpo-receptáculo John Malkovich" implica sua realização como
homem, este será, na verdade, o
meio pelo qual Lotte realizará seu
desejo de ter filhos. Será a maternidade o que unirá "Lotte-pai" e
"Maxine-mãe".
Assim, se entendermos que o
desejo se encontra nos sintomas
sob a forma de compromisso, se
aquilo que em psicanálise denominamos "fantasma" pode ser
compreendido como uma encenação imaginária na qual o sujeito está presente e que figura, de
modo mais ou menos deformado
por processos defensivos, a realização de um desejo em última
instância inconsciente, a urgência
iminente de Craig na disputa com
Lotte pelo amor de Maxine parece
ser ainda outra via na realização
de seu desejo de ser reconhecido e
reconhecer-se como marionetista.
Assim é que, se para Craig, a
marionete é uma extensão dele
mesmo, não podemos deixar de
pensar que a ocupação mesma do
"corpo-receptáculo John Malkovich" possa ser esta outra via de
"falar sua verdade". Como diz
Craig, a arte sempre fala a verdade, mesmo quando mente.
Pois sim, se a análise busca desenredar o "fantasma" subjacente
às produções do inconsciente, se é
o lugar de reconstrução do "fantasma", o cinema talvez seja a
possibilidade mesma de colocar o
desejo em obra. E, se por um lado,
"Quero Ser" pode ser assistido como um filme que trata da premissa básica de que "as pessoas não
querem ser quem são" e da tão
comentada crise do sujeito moderno (ou pós-moderno), pode
também ser recebido como aquele que, afinal, reafirma a potência
do desejo de pôr o sujeito em
obra.
Giovanna Bartucci é psicanalista, autora de
"Borges: a Realidade da Construção. Literatura e Psicanálise" (Imago), entre outros
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