São Paulo, terça-feira, 02 de maio de 2000


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CINEMA CRÍTICA
Sendo John Malkovich: o desejo em obra

GIOVANNA BARTUCCI
especial para a Folha

É possível compreender porque "Being John Malkovich" (Sendo John Malkovich, aqui chamado "Quero Ser John Malkovich"), primeiro longa de Spike Jonze, premiado pela National Society of Film Critics (EUA), tenha, nos últimos tempos, dividido a cena com "Beleza Americana", vencedor do Oscar de melhor filme.
Se "Beleza Americana" é um filme simpático, bem dosado e cheio de surpresas, mas que, no entanto, se utiliza dos mesmos meios que critica, "Being John Malkovich" é justo o oposto.
Desconcertante, inusitado, engraçado, recebido como uma "comédia anárquica sobre fama e identidade", este filme é, na verdade, tudo isto e algo mais: é um escudeiro fiel do que chamamos desejo, e será este "algo mais" que nos interessará aqui.
Vejamos: Craig Schwartz (John Cusack) é um marionetista incapaz de ganhar a vida com a própria arte, casado com Lotte (Cameron Diaz), mulher afetuosa e desejosa de ter filhos, que, no entanto, dedica sua vida a cuidar de animais. Maxine (Catherine Keener) é a colega de trabalho de Craig na Lester Co., empresa sediada no 7º e meio andar de um tradicional edifício nova-iorquino e por quem tanto Craig quanto Lotte se apaixonarão. Será a pequena portinhola descoberta por Craig que leva a quem quer que seja para dentro do cérebro (ou alma) de John Malkovich por 15 minutos e por apenas US$ 200 que subverterá a cena, reafirmando a persistência do desejo.
Assim, será esta pequena portinhola o que possibilitará a Lotte ocupar o "corpo-receptáculo John Malkovich" e descobrir que, afinal, está enamorada de Maxine, com quem terá um caso.
E Craig, o que dizer deste marionetista "fracassado"? Pois sim, se seu sintoma é sua incapacidade de ganhar a vida com a própria arte, será por meio do "corpo-receptáculo John Malkovich" que Schwartz-Malkovich descobrirá a fama e o reconhecimento como marionetista. De quebra, casa-se com Maxine, por sua vez enamorada de Lotte.
E Maxine? Maxine é a empresária deste marionetista-personagem Schwartz-Malkovich, por meio de quem também descobre fama e fortuna como empresária. Afinal, se Craig controla Malkovich, Maxine controla Craig.
Mas, se é entre a plenitude da experiência do sonho e a formação da alma que o desejo se insinua, será quando da constatação de sua gravidez que o castelo de Maxine, de fama e fortuna, desmorona. Se para Lotte ocupar o "corpo-receptáculo John Malkovich" implica sua realização como homem, este será, na verdade, o meio pelo qual Lotte realizará seu desejo de ter filhos. Será a maternidade o que unirá "Lotte-pai" e "Maxine-mãe".
Assim, se entendermos que o desejo se encontra nos sintomas sob a forma de compromisso, se aquilo que em psicanálise denominamos "fantasma" pode ser compreendido como uma encenação imaginária na qual o sujeito está presente e que figura, de modo mais ou menos deformado por processos defensivos, a realização de um desejo em última instância inconsciente, a urgência iminente de Craig na disputa com Lotte pelo amor de Maxine parece ser ainda outra via na realização de seu desejo de ser reconhecido e reconhecer-se como marionetista.
Assim é que, se para Craig, a marionete é uma extensão dele mesmo, não podemos deixar de pensar que a ocupação mesma do "corpo-receptáculo John Malkovich" possa ser esta outra via de "falar sua verdade". Como diz Craig, a arte sempre fala a verdade, mesmo quando mente.
Pois sim, se a análise busca desenredar o "fantasma" subjacente às produções do inconsciente, se é o lugar de reconstrução do "fantasma", o cinema talvez seja a possibilidade mesma de colocar o desejo em obra. E, se por um lado, "Quero Ser" pode ser assistido como um filme que trata da premissa básica de que "as pessoas não querem ser quem são" e da tão comentada crise do sujeito moderno (ou pós-moderno), pode também ser recebido como aquele que, afinal, reafirma a potência do desejo de pôr o sujeito em obra.


Giovanna Bartucci é psicanalista, autora de "Borges: a Realidade da Construção. Literatura e Psicanálise" (Imago), entre outros

Avaliação:     



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