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CRÍTICA/TEATRO
Sesc Vila Mariana abriga quatro textos do autor; "Terra em Trânsito" e "Brasas no Congelador" se destacam
Peças trazem o melhor e o pior de Gerald Thomas
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Gerald Thomas tem a mesma importância para o teatro brasileiro que Ziembinski ou
Victor Garcia. Desde que surgiu,
em 1985, cumpre a função do outsider, daquele que vem polemizar
e polinizar com outras sementes,
no caso a técnica e a sintaxe "off-Broadway" que aprendeu a exercer no La MaMa.
Suas peças em forma de happenings em permanente desconstrução, se nem sempre seguem a
prudência dramatúrgica, cumprem o princípio decodificado
por Haroldo de Campos: Gerald
escreve com os atores em cena.
Para os que o rejeitam enquanto
demiurgo que reduz atores a objetos cênicos, basta uma lista dos
que já compartilharam com ele
essa aventura caótica. Encenador
de si mesmo, em busca da obra de
arte do acaso total, Gerald retoma
sempre a mesma obra.
Partindo de oxímoros e trocadilhos, as quatro peças que Gerald
Thomas estréia agora se apresentam antes de tudo como um desafio à catastrófica falta de condições de produzir teatro no Brasil.
É uma aposta que, desse novelo
caótico e inesgotável que é a visão
de mundo do diretor, quatro fios
podem ser puxados simultaneamente ao custo de um.
O resultado é irregular, mas elucida muito os vícios e virtudes de
seu processo de criação. A narrativa em fluxo de consciência, remetendo quase à escrita automática surrealista, e que se apresenta
em construção a ser completada
ao longo da temporada, pode tanto fascinar pelo contraste de tons
e profundidades quanto desandar
de vez e resultar em nada.
A sintaxe vertiginosa da encenação é sempre amparada em um
meticuloso projeto de luz e onipresente trilha sonora e, neste espetáculo, assumem cada vez mais
a competente iluminação de Aline Santini e as composições de
Edson Secco nas trilhas do universo do encenador-demiurgo.
O maior peso, no entanto, está
nas costas do ator. Cada uma das
peças tem um protagonista encarregado de segurar o fio da meada
em meio ao labirinto.
Em "Brasas no Congelador",
portanto, era grande a expectativa
em cima da estréia nos palcos de
Sergio Groisman. E ele foi muito
além da expectativa.
Valendo-se de sua máscara de
apresentador somente em alguns
momentos, em piadas quase internas sobre o horário tardio de
seu programa, ele soube tirar partido de sua vulnerabilidade corajosa, ora desarmando o público
com um humor que remete a Stan
Laurel, ora aflorando uma angústia sincera ao evocar Auschwitz.
Contribuem muito com ele Fábio Pinheiro, que faz um pai
amargo, e a terna e hilariante mãe
Luciana Romanzini. A trama, ainda inacabada, aponta para um
complô que satiriza os duelos entre as emissoras de TV, que agem
como se traficassem urânio quando tudo não passa de perfumaria.
Bem mais redondo está "Terra
em Trânsito", que traz Fabiana
Guglielmetti como uma cantora
de ópera em pânico antes do terceiro sinal, em seu camarim, em
meio a cocaína e figurinos, fazendo confidências a um ganso.
Em um cenário muito bem-acabado, a atriz rodopia como uma
dançarina de caixa de música, comovente e incansável, em um papel que a consagra.
Para dar vida ao ganso, atuando
só com o braço direito, mas confirmando assim o talento visto em
seus pequenos personagens nas
outras peças, Juliano Antunes se
afirma enquanto esperança da
nova geração.
O filão, no entanto, vai se esgotando nas peças seguintes. "Um
Bloco de Gelo em Chamas" conta
com o carisma de Luiz Damasceno, que se deleita fazendo uma diva decadente, mas seja por falta de
um antagonista à altura, seja por
uma trama que perde pé por excesso de reviravoltas, o inacabado
dá lugar ao interminável.
Quanto a "Asfaltaram o Beijo",
o estrago é ainda maior. O mote
da homenagem a Samuel Beckett
em seu centenário, pedra angular
de todo o projeto, era precioso,
sabendo-se a cumplicidade que
houve entre ele e Gerald.
No entanto, o diretor cometeu
uma imprudência ao escolher o
ator protagonista. Gerald Thomas
no papel de Gerald Thomas só se
justifica pelo tipo físico. O ator
iniciante esquece marcas, pula
textos, apela por nervosismo à
complacência da platéia e acaba
desautorizando um depoimento
importante.
Em suma, em "Asfaltaram a
Terra" há o melhor e o pior de Gerald Thomas, para o prazer dos
amigos e inimigos. Seja qual for o
resultado no entanto, e sabendo-se que estará em mudança constante, o espetáculo homenageia
Beckett de um modo corajoso:
vulnerável a todas as falhas.
Um Bloco de Gelo em Chamas e Asfaltaram o Beijo
Quando: qui. e sáb., às 20h
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