São Paulo, terça-feira, 02 de maio de 2006

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CRÍTICA/TEATRO

Sesc Vila Mariana abriga quatro textos do autor; "Terra em Trânsito" e "Brasas no Congelador" se destacam

Peças trazem o melhor e o pior de Gerald Thomas

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Gerald Thomas tem a mesma importância para o teatro brasileiro que Ziembinski ou Victor Garcia. Desde que surgiu, em 1985, cumpre a função do outsider, daquele que vem polemizar e polinizar com outras sementes, no caso a técnica e a sintaxe "off-Broadway" que aprendeu a exercer no La MaMa.
Suas peças em forma de happenings em permanente desconstrução, se nem sempre seguem a prudência dramatúrgica, cumprem o princípio decodificado por Haroldo de Campos: Gerald escreve com os atores em cena.
Para os que o rejeitam enquanto demiurgo que reduz atores a objetos cênicos, basta uma lista dos que já compartilharam com ele essa aventura caótica. Encenador de si mesmo, em busca da obra de arte do acaso total, Gerald retoma sempre a mesma obra.
Partindo de oxímoros e trocadilhos, as quatro peças que Gerald Thomas estréia agora se apresentam antes de tudo como um desafio à catastrófica falta de condições de produzir teatro no Brasil. É uma aposta que, desse novelo caótico e inesgotável que é a visão de mundo do diretor, quatro fios podem ser puxados simultaneamente ao custo de um.
O resultado é irregular, mas elucida muito os vícios e virtudes de seu processo de criação. A narrativa em fluxo de consciência, remetendo quase à escrita automática surrealista, e que se apresenta em construção a ser completada ao longo da temporada, pode tanto fascinar pelo contraste de tons e profundidades quanto desandar de vez e resultar em nada.
A sintaxe vertiginosa da encenação é sempre amparada em um meticuloso projeto de luz e onipresente trilha sonora e, neste espetáculo, assumem cada vez mais a competente iluminação de Aline Santini e as composições de Edson Secco nas trilhas do universo do encenador-demiurgo.
O maior peso, no entanto, está nas costas do ator. Cada uma das peças tem um protagonista encarregado de segurar o fio da meada em meio ao labirinto.
Em "Brasas no Congelador", portanto, era grande a expectativa em cima da estréia nos palcos de Sergio Groisman. E ele foi muito além da expectativa.
Valendo-se de sua máscara de apresentador somente em alguns momentos, em piadas quase internas sobre o horário tardio de seu programa, ele soube tirar partido de sua vulnerabilidade corajosa, ora desarmando o público com um humor que remete a Stan Laurel, ora aflorando uma angústia sincera ao evocar Auschwitz.
Contribuem muito com ele Fábio Pinheiro, que faz um pai amargo, e a terna e hilariante mãe Luciana Romanzini. A trama, ainda inacabada, aponta para um complô que satiriza os duelos entre as emissoras de TV, que agem como se traficassem urânio quando tudo não passa de perfumaria.
Bem mais redondo está "Terra em Trânsito", que traz Fabiana Guglielmetti como uma cantora de ópera em pânico antes do terceiro sinal, em seu camarim, em meio a cocaína e figurinos, fazendo confidências a um ganso.
Em um cenário muito bem-acabado, a atriz rodopia como uma dançarina de caixa de música, comovente e incansável, em um papel que a consagra.
Para dar vida ao ganso, atuando só com o braço direito, mas confirmando assim o talento visto em seus pequenos personagens nas outras peças, Juliano Antunes se afirma enquanto esperança da nova geração.
O filão, no entanto, vai se esgotando nas peças seguintes. "Um Bloco de Gelo em Chamas" conta com o carisma de Luiz Damasceno, que se deleita fazendo uma diva decadente, mas seja por falta de um antagonista à altura, seja por uma trama que perde pé por excesso de reviravoltas, o inacabado dá lugar ao interminável.
Quanto a "Asfaltaram o Beijo", o estrago é ainda maior. O mote da homenagem a Samuel Beckett em seu centenário, pedra angular de todo o projeto, era precioso, sabendo-se a cumplicidade que houve entre ele e Gerald.
No entanto, o diretor cometeu uma imprudência ao escolher o ator protagonista. Gerald Thomas no papel de Gerald Thomas só se justifica pelo tipo físico. O ator iniciante esquece marcas, pula textos, apela por nervosismo à complacência da platéia e acaba desautorizando um depoimento importante.
Em suma, em "Asfaltaram a Terra" há o melhor e o pior de Gerald Thomas, para o prazer dos amigos e inimigos. Seja qual for o resultado no entanto, e sabendo-se que estará em mudança constante, o espetáculo homenageia Beckett de um modo corajoso: vulnerável a todas as falhas.


Um Bloco de Gelo em Chamas e Asfaltaram o Beijo
  
Quando:
qui. e sáb., às 20h



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