São Paulo, Quinta-feira, 03 de Junho de 1999
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SHOW - CRÍTICA
Bethânia faz tempestade desabar fora de tempo

da Reportagem Local

Maria Bethânia costuma fazer alguns dos grandes espetáculos ao vivo de música popular brasileira. Seu novo show, "A Força Que Nunca Seca", não é um dos grandes espetáculos de Maria Bethânia.
Todos os ingredientes dos ritos dionisíacos que ela costuma promover estão presentes: a coordenação do diretor teatral e parceiro antigo Fauzi Arap, poemas fortes intercalando canções, o canto estrondoso, os segmentos de justaposição ideológica de breves canções, a música de fundo que já sobe por entre os aplausos entre canções, os pés nus, as idiossincrasias.
Quando ela entra, cantando "Gema" (81), do irmão Caetano, sabe-se de antemão que o milagre irá se consumar. Ninguém canta como Bethânia. Nem nessa noite.
Mas alguma coisa arrefece o astral de "A Força Que Nunca Seca", desde muito cedo. O magnífico segmento "água" do show "Rosa dos Ventos" (71) é reproduzido ponto por ponto, rendendo um dos mais belos momentos da noite: o de "O Tempo e o Rio", que ela gravara num -hoje obscuro, apesar de fundamental- disco em parceria com Edu Lobo, de 67.
Só que o segmento parece fora de lugar, solto -ainda que as razões escapem ainda da razão. Ele segue com outros temas aquáticos, como "Dois de Fevereiro", de Caymmi. Deságua num duplo Villa-Lobos, matizado com "Luar do Sertão", "Azulão" e a prosaica "Romaria".
Mas aí os pingos do "fora-de-lugar" começam a quicar no chão inclinado do palco. "Iansã" (72) -rainha dos raios-, ponto de força de sua carreira, surge num arranjo estragado, pintado de eletricidade que antes vinha da voz.
Foi a tempestade que caiu, e o primeiro ato vê o dia amanhecer, pós-tormenta. Ocorre que é erro de "timing", pois até aí era só sopro. Seguem-se Roberto Carlos, a bela e recente "Não Tenha Medo", "Mel" (79) em arranjo excessivamente percussivo (como é, de resto, muito do show).
Só agora irá de fato desabar o aguaceiro. É o amor, "É o Amor", é o amor. A dama deita e rola no deleite da pronúncia da palavra "amor", o povão brega-chique da platéia canta em coro.
É horrível. Assombrações do mundo cão -Zezé di Camargo, Xuxa, Roberta Miranda, Hebe, Sazon, Maluf, Ratinho- contaminam o cenário natural do Brasil interior que Bethânia quer desnudar.
Quando Antunes Filho, há poucos anos, encerrava "Vereda da Salvação" com "Pense em Mim", fazia feroz denúncia do Brasil collorido, corrupto, indigente. Em Bethânia, placidez, dinheiro e "É o Amor", não há cisto de denúncia. É adesão firme e forte -ainda que por omissão- ao Brasil FHC, corrupto e indigente. Dela não se esperava isso. Não dela.
Bethânia nunca haverá de afirmá-lo, mas então fica evidente que ela já estava constrangida desde o início. Era isso: "É o Amor", roupas brega-chiques de madame, Silvia Poppovic na platéia.
A dama vai ainda tentar restabelecer a ordem perdida, usando Ivone Lara ("Sonho Meu"), tropicália ("Marginália 2", de Gil e Torquato Neto, em que ratifica o Brasil "é o amor" gritando que "aqui é o fim do mundo" -é mesmo, Bethânia), sinceras percussões em balde e, é óbvio, Chico Buarque.
Adere às míticas "Missa Agrária" e "Carcará" (65) a recente "Assentamento", de Chico, querendo fazer política. Evoca o grande irmão de "João e Maria", querendo fazer política. Erra letras e entradas (como sempre), política e estabanada.
De repente, comete a suprema ousadia. Canta o que ninguém mais ousa cantar, a supostamente datada "Roda Viva" (68), de Chico. Aí é independente, aí despreza o convencional. Tarde demais.
Declamando o "Navio Negreiro" de Castro Alves, ainda dará banho de dramaticidade e convicção. São fagulhas -esse não é um show de êxtase, como é praxe. Bethânia está comprometida, como nunca antes. E não gosta disso, tanto que entrega ao público seu desconforto. É uma dama. E canta divinamente.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)


Avaliação:


Show: A Força Que Nunca Seca
Artista: Maria Bethânia
Onde: Palace (av. dos Jamaris, 213, Moema, tel. 531-4900)
Quando: qui., às 21h30, sex. e sáb,, às 22h, e dom., às 18h; até 20 de junho

Quanto: R$ 30 a R$ 70 Patrocínio: Mastercard



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