São Paulo, terça-feira, 03 de novembro de 2009

Próximo Texto | Índice

Crítica

Pianistas brilham na Sala São Paulo na ausência da Osesp

Collard, Feghali, Pizarro e Ugorsky levaram público além do tempo e do espaço

Divulgação
O pianista Anatol Ugorsky, que tocou sábado na Sala São Paulo

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A ideia foi ótima: enquanto a Osesp fazia sua temporada pelos EUA, quatro pianistas se apresentaram semanalmente na Sala São Paulo. Vieram o francês Jean-Philippe Collard, o brasileiro (radicado no Texas) José Feghali, o português (radicado na Inglaterra) Artur Pizarro e o russo (nascido na Sibéria, radicado na Alemanha) Anatol Ugorsky.
Nem tudo correu tão bem quanto podia, mas a série foi só crescendo do começo ao fim e terminou com um lindo concerto do siberiano. Para ser preciso: terminou com os dedos da mão esquerda do pianista vibrando ironicamente no ar, depois de uma hora e meia de prodígios, exibidos para uma plateia cheia e variada, em plena tarde de sol no feriadão, no sábado.
Ugorsky parece um cientista maluco de desenho animado, a careca reluzente ladeada por tufos de cabelo arrepiado. Como tantos outros virtuoses (Glenn Gould e Martha Argerich, por exemplo) põe as mãos sobre o teclado de modo idiossincrático, muitas vezes contrário ao que se ensina. Para ele, dá certo.
Começou com as "Bagatelas", de Beethoven (1770-1827), maravilhosas abstrações, o estilo tardio levado ao limite, música feita de pedaços recolhidos da memória e recriados noutra esfera, continuou pelas irresistíveis "Três Danças de Petrouchka", de Stravinsky (1882-1971), e depois avançou por Chopin (1810-49), com as quatro "Mazurkas" op. 17 e a integral dos "Estudos" op. 25.
Tanto no Beethoven quanto nas "Mazurkas", Ugorsky em muitos pontos toca mais lento do que o habitual. O resultado suspende a música no espaço, mais do que no tempo. Mesmo em "Petrouchka", com a incrível fisicalidade dos acordes paralelos de dez notas do começo, a música parecia se abrir num prisma de som. Que esses acordes fossem evocados depois, nos acordes do "Estudo op. 25 n. 10" de Chopin era e não era uma coincidência. Era delírio e ciência.
Estávamos já muito longe das elegâncias discretas de Collard, no início da série, com seu Chopin sóbrio e intimista. Longe também da "Sonata em Lá Maior" de Schubert (1797-1828), que Feghali tocou lendo, um pouco como quem está mesmo lendo um romance, a atenção se intensificando aqui e diminuindo ali, a forma total se fazendo aos poucos, incerta.
Menos longe das ilusões narrativas e sonoras de Pizarro, nos seis movimentos da "Iberia" de Albéniz (1860-1909), com suas harmonias ricas e seu teatro de "vozes" sem palavras. Pizarro deve ser o primeiro pianista a preferir o Yamaha ao Steinway da Sala São Paulo. Para "Gaspard de La Nuit", de Ravel (1875-1937), não soou tão bem quanto para a "Sonata" nº 7 de Prokofiev (1891-1953), com a famosa impetuosa tocata do final.
Terminar a série com Ugorsky foi muito bom. E a experiência serve de modelo para os quatro pianistas que vêm aí em 2010, integrados à temporada da Osesp: Bavouzet, Trpceski, Paul Lewis e Ewa Kupiec. Cada um fará um concerto com a orquestra e um recital solo. Grande ideia. Os músicos aproveitam a viagem; ou melhor, aproveitamos nós a verdadeira viagem, para fora do tempo e do espaço.

Avaliação: ótimo


Próximo Texto: Crítica / "O Fantástico Reparador de Feridas": Miséria do curandeirismo dá bom teatro
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.