São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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Crítica/teatro/"Divinas Palavras"

Peça menor dos Satyros mostra coragem

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Cena da peça "Divinas Palavras", em cartaz na praça Roosevelt

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Quem for aos Satyros em busca de Ramon Del Valle-Inclán é capaz de sentir que se perdeu pelo caminho. Não que o tom deste "Divinas Palavras" -um pastiche macabro sobre a miséria humana- não seja próximo ao da peça de 1920, entre o deboche e a indignação, com personagens grotescas talhadas como marionetes.
Também não é por falta de pesquisa nem de familiaridade com a proposta do autor modernista espanhol que o espetáculo não o reverencia, já que, desde 1997, em Lisboa, Rodolfo Garcia Vázquez e Ivam Cabral já tinham uma versão do texto.
E é bom lembrar também que foi com outro Valle-Inclán, "Retábulo de Avareza, Luxúria e Morte", que o grupo se instalou na praça Roosevelt, em dezembro de 2000. Acontece que, para estar à altura de um iconoclasta que lutava antes de tudo contra o conformismo do realismo burguês, Vázquez e Cabral não o tomam como um clássico a ser respeitado, mas como base de inspiração para uma observação sobre as condições da criação artística hoje, sobretudo a partir de uma autocrítica do grupo.
Assim, o espetáculo deve ser entendido dentro da trajetória recente dos Satyros como uma tomada de consciência de estar em um beco sem saída. Tudo começa com "Transex", de 2004, na qual o cotidiano realista fantástico dos travestis da praça é representado dentro de uma estética voluntariamente precária, como uma piada interna, com a cumplicidade da transexual Phedra D. Córdoba, atriz e personagem da trama.

Momento ápice
A vinda da dramaturga alemã Dea Loher originou "A Vida na Praça Roosevelt", um texto de 2005, com este mesmo universo visto pelo distanciamento de um estrangeiro, que rendeu um espetáculo de repercussão na Europa, pelo Thalia Theatre de Hamburgo. Retomado pelo elenco dos Satyros, a praça Roosevelt pôde triunfar por conta própria na Alemanha, em momento ápice da companhia.
"Inocência", segundo texto de Loher, vinha com uma boa carreira, com uma estética igualmente requintada, quando teve que ser precocemente interrompida. Aí entra "Divinas Palavras": um balanço de crise, no qual a grande personagem é a companhia.
Com essa chave, fica mais fácil entender as ironias ferozes com as viagens à Europa e a Nova York, para vender estereótipos da carnavalizada precariedade brasileira. Cabral surge como Laureano, um anão idiota explorado em "freak show" pela família que se entredevora, e, assim, ao mesmo tempo em que debocha da sua condição de atração principal, tem uma atuação mais contida, o que permite maior visibilidade aos colegas de cena. Disso se aproveitam bem Silvanah Santos, em sua melhor atuação, e Nora Toledo, que vem se firmando como uma grande atriz.
Voltando ao tom de piada interna de "Transex", sem perder o requinte visual das montagens mais recentes, "Divinas Palavras" acabou sendo ofuscada por "Vestido de Noiva", última e mais bem realizada montagem dos Satyros. Fica como montagem menor, mas de grande coragem, dentro do sempre surpreendente repertório da companhia.


DIVINAS PALAVRAS
Quando: sex. e sáb., às 21h30; dom., às 21h; até 11/5
Onde: Espaço dos Satyros 1 (pça. Franklin Roosevelt, 214, tel. 3258-6345)
Quanto: R$ 5 (p/ moradores da pça. Roosevelt) e R$ 10
Avaliação: bom



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