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DANÇA
No espetáculo "Desassossego", de Marcio Aurelio, a bailarina volta aos palcos após 12 anos, mais atriz do que nunca
Marilena Ansaldi encena multidão de si mesma
Antônio Gaudério/Folha Imagem
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A bailarina Marilena Ansaldi no espetáculo "Desassossego" |
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
Exasperado combate contra
uma existência avessa aos
apelos da subjetividade. Que é
também combate contra si mesmo: contra o cansaço, o desassossego, o mal-estar de se saber sem
mola para a ação. Depois de 12
anos fora dos palcos, Marilena
Ansaldi, grande nome da dança
paulista, retorna com um espetáculo concebido a partir de trechos
do "Livro do Desassossego", de
Bernardo Soares (um dos heterônimos de Fernando Pessoa). Dirigida por Marcio Aurelio, "Desassossego" é parte da programação
do "Dança em Pauta", no Centro
Cultural Banco do Brasil (CCBB).
Tudo começa no silêncio: uma
figura de preto se dobra sobre si
mesma, por trás de um guarda-chuva, e se interroga: "Meu...
Deus..., meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? [...] O que é este
intervalo que há entre mim e
mim?". No fundo do palco, há um
muro branco, alegórico limite que
bloqueia e ao mesmo tempo barreira a se transpor.
Ao longo de 50 minutos de um
monólogo minuciosamente coreografado, numa linguagem que
atualiza referências múltiplas do
teatro e da dança dos últimos 50
anos, vão perpassando temas que
fizeram parte dos espetáculos de
Ansaldi, em contraponto com elementos conhecidos de sua vida
pessoal -fantasias, lembranças,
dores. Bailarina de formação,
com muita vivência de clássico e
de dança-teatro, Ansaldi ressurge
agora mais atriz do que nunca. O
corpo é o veículo da expressão,
que impulsiona as palavras.
Do "Livro do Desassossego":
"Tudo me esbofeteia e me escarnece. Conviver com os outros é
uma tortura para mim. Eu tenho
os outros em mim. [...] Sozinho,
multidões me cercam. Não tenho
para onde fugir a não ser que fuja
de mim". Recitando uma bem
costurada colagem de frases como essas, Ansaldi encena expressiva e plasticamente toda uma galeria de personagens: multidão de
si mesma, uma "cena viva, onde
passam vários atores representando suas peças".
As palavras avassaladoras de
Pessoa ressoam com todo seu peso num tempo espaçado e preciso, muito bem controlado por
Aurelio. Cada detalhe, cada gesto
se desdobra, ao mesmo tempo em
que busca uma simplicidade beckettiana essencial. Também a luz
se divide em nuances, no branco
do muro e do piso, enquanto seus
reflexos iluminam e sombreiam
as coisas. Com gestos escultoricamente talhados, Ansaldi desenha
um espaço que é externo e interno
a ela ao mesmo tempo, expandindo sua própria forma com os tecidos que prolongam seus braços e,
no fim, com a máquina de caminhar onde se perde afinal dos nossos olhos.
Os fragmentos do texto são ouvidos, muitas vezes, com fragmentos de músicas delicadamente por trás -de Astor Piazzolla a
óperas de Verdi (menção a sua infância, cercada de óperas) e, no
fim, a uma ária de "Paixão Segundo São Mateus", de Bach. É a linda
ária para contralto com violino
solo, "Erbarme Dich" (tem piedade), fechando aquela conversa
com Deus que deu começo a tudo, agora em tons de possível
aceitação humana de sua própria
humanidade.
O resto, como ela mesma diz, citando Hamlet, o resto é silêncio.
Mas o resto também somos nós,
recolhidos depois ao teatro vazio
de cada um, tão cheio agora da
imagem poderosamente viva de
Marilena Ansaldi.
Desassossego
Quando: hoje, às 20h, e amanhã, às 19h
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil (r.
Álvares Penteado, 112, centro, tel. 3113-3651/3652)
Quanto: R$ 10 (ingressos esgotados)
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