São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2004

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CINEMA

"Estranhas Ligações" investiga signos da nova Europa unificada

CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O conteúdo de "Estranhas Ligações" indica sintomas de um cinema, das conexões entre pessoas perdidas e das zonas de limite e transição em suas vidas, que ultimamente vem sendo bastante reproduzido. Nesse cinema, há quase sempre a fatalidade e o colapso revestidos por metáforas físicas (chuva, acidentes, pele) que vão pavimentar as emoções, o abstrato. Pensemos, por exemplo, em Iñárritu ("Amores Brutos") e em Cláudio Assis ("Amarelo Manga"). Surgem obras que irmanam o homem com os demais bichos, alinhando idéias como açougue, transplantes e solidão e refletindo outras tantas, como continuidade e fim.
Aqui, um touro morre em uma tourada. A carcaça, os órgãos e as perfurações que o animal legou originam ligações entre algumas pessoas, na Espanha, na Bélgica e na França. O bicho se transforma em um kit de fragmentos animais, que, processados laboratorial e industrialmente, possibilitarão respostas simples a imensas lacunas. Percebemos que sem a tourada, não teria sido ativado um discreto, mas contundente, movimento na vida dessa gente.
Assim, será abraçado um grande tema que, em um mundo de estruturas cada vez mais linkadas, é dos mais modernos: o equilíbrio das coisas. O que é feito aqui que interferirá lá. Temos também uma obra sobre o que pais informam, omitem e perpetuam. E é aqui que se refletirá a Europa nova e seu projeto unificado.
Explica-se: no filme, pessoas, entre fronteiras relativas, buscam aquilo que são, ou o seu tamanho no mundo. Há, por exemplo, gente confrontando vestígios dos pais, das raízes, no ofício da taxidermia (reconstrução dos mortos, vocação do belga que não conhece o pai) e na conservação de marcas: a italiana que mora na França queimou suas verrugas, mas deixou uma que herdou do pai. De sua aldeia, portanto. A professora espanhola que leciona na França estranha o fato da mãe não ter registrado suas primeiras pegadas de infância. As pessoas dividem os pedaços do mesmo touro, vivem o ponto de transição e procuram o de partida.
Gleize sabe filmar com crença no absurdo. Abre e fecha planos com a vivacidade de quem está aprendendo a iludir e a penetrar. A autora orquestra com tato a ausência de voz e a banalidade, mas "Estranhas Ligações" incorre em velhos vícios novos. É uma obra do material orgânico que, antes de se arriscar em rotas inseguras na captação do viver e do sentir, iguala as experiências a seus simbolismos. Nota-se que há um cinema de ressonância física emulado, que se comunica menos fisicamente e mais como acessório de incrementadas sinfonias cênicas das significações. É o limite entre a beleza e a expressão audiovisual de uma bela aula de semiologia.


Estranhas Ligações
Carnages
  
Direção: Delphine Gleize Produção: França/Bélgica/ Espanha/ Suíça, 2002 Com: Chiara Mastroianni, Ángela Molina, Lucia Sanchez Onde: Espaço Unibanco e Lumière



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