São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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"O AMANTE BRASILEIRO"

Peça celebra amor clandestino e permite redescoberta do desejo

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Cena de "O Amante Brasileiro", que está em cartaz no Oficina


"O Amante Brasileiro" celebra o amor clandestino, duplamente tímido, por ser por e-mail -essa modernidade aparentemente desumanizante- e entre dois amantes de mais de cinqüenta anos, no "tempo da delicadeza", segundo a expressão de Chico Buarque.
Terceira peça de Betty Milan, dá continuidade a sua busca por um "teatro da voz", que expresse o lugar do desejo no mundo atual. A autora vence os desafios do gênero, sobretudo por seu grande manejo da língua.
Como boa psicanalista, sabe alternar conceitos abstratos com fatos triviais, em um processo de reconstrução da realidade que os blogs vêm generalizando, e a consumação física do desejo é quase inteiramente substituída pela volúpia da palavra.
Clara (Luciana Domschke), jornalista brasileira, se apaixona em Paris por Sébastien, professor sufocado pelo casamento, vivido por Ricardo Bittencourt . O amor o transforma em sua identidade cultural: começa a reconhecer a calçada de Copacabana nas curvas do rio Sena, chama de brasileira a sua redescoberta da felicidade. A angústia da separação, exacerbada pela rancorosa intervenção de Claude (Magali Biff), a mulher castradora, terá final feliz, em um clima de quase fábula: o amor ainda é possível na frieza da modernidade.

Delicadezas
Fransérgio Araújo tece com vigor todas essas delicadezas, tirando proveito do vocabulário do Teatro Oficina, no qual é um dos atores-celebrantes. Assim, isola os amantes em altares, nos extremos do teatro-rua, e comunga com a platéia, com vinho e caldo de cana. Tanto a projeção de imagens como a trilha sonora, às vezes redundando o texto, dão uma grande sensualidade ao espetáculo, estojo eficiente para a plena e madura Luciana Domschke.
A sua nudez, aqui, não é mais insolência ou busca da inocência perdida, como nas celebrações de José Celso, mas um reencontro feliz com o próprio corpo. A sensualidade de seu parceiro Ricardo Bittencourt, representante do mundo mental francês, está mais no timbre de sua voz, e na inteligência com que conduz a frase. Magali Biff, em pequena intervenção, sabe escapar dos clichês da mulher traída, temperando seu rancor com grande dignidade.
É como um Oficina de bolso. Às vezes, a ênfase transborda um pouco e provoca o distanciamento. Porém, pertencendo a um projeto que engloba outras duas montagens (Araújo dirige também "Querô", de Plínio Marcos, e é ator no "Assalto" de Zé Vicente, dirigida por Marcelo Drummond), a montagem de "O Amante Brasileiro" deve ser entendida como uma busca de aprimoramento na interpretação individual, em paralelo à celebração coletiva das peças do Oficina.
Para uns poucos privilegiados na platéia que têm se arriscado a compartilhar esse grande amor, a sensação é de uma redescoberta do desejo, Platão se reconciliando com as sombras eletrônicas da internet. Que chova arroz sobre nossas culpas redimidas.

O Amante Brasileiro
   
Texto: Betty Milan
Direção: Fransérgio Araújo
Com: Ricardo Bittencourt, Luciana Domschke e Magali Biff
Onde: Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela Vista, região central, tel. 3106-2818); sáb. e dom., às 19h; até 26/9
Quanto: R$ 20


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