São Paulo, quarta-feira, 06 de setembro de 2006

Índice

Crítica/teatro/"O Escrivão"

Montagem de Abujamra tem a força de uma piada interna

Divulgação
Marcelo Galdino durante apresentação da peça "O Escrivão"


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Bartleby é um jovem e frágil escriturário que é contratado graças à sua rapidez de copista em um pequeno escritório em Wall Street. Seu comportamento exemplar é quase uma alegoria: não bebe no serviço como seus dois colegas bufos, mal come, não sai nunca. Mas, um dia, recusa-se a atender a uma ordem do patrão, que o levaria a romper seus hábitos, com uma recusa polida e implacável: "Prefiro não fazê-lo", para o escândalo dos colegas e deslumbre do patrão, que acredita estar imbuído de uma missão divina ao aturá-lo.
A novela de Herman Melville, escrita no século 19, antecipa tanto os pesadelos de Kafka como os escachos do surrealismo. Como Godot, Bartleby é um enigma aberto, a quem cada um atribui o sentido que quer.
Ao adaptá-la para o teatro, Marilia Toledo teve a sensibilidade e o embasamento necessários para não tornar seu tema seminal um mero ponto de partida -mantendo a narrativa direto para a platéia, em sua curta duração, "O Escrivão" é eficaz ao provocar a perplexidade com seu fim abrupto.

Quase lírica
Pela mesma razão, o grande mérito da direção de Antônio Abujamra está na construção quase lírica deste escrivão. Miguel Hernandez faz Bartleby com muita delicadeza, tornando plausível o fascínio que exerce sobre seu chefe (Marcelo Galdino, já mais caricatural).
O cenário múltiplo de Serroni vai introduzindo o delírio aos poucos neste universo árido da burocracia, onde Melville, frustrado pela falta de reconhecimento pelo seu "Moby Dick", teve que sobreviver.
No entanto, Abujamra, com a fé no próprio taco dos virtuosi, ainda não conseguiu desta vez se manter sóbrio. Brinca várias vezes com a idéia de tédio da função de copista e faz cenas se repetirem em looping, o que tem o mérito de aumentar a participação de Abrahão Farc -um grande ator à espera de um papel do seu tamanho-, mas que pesa no delicado humor da trama. Deixa os atores soltos para improvisarem, e Adriano Stuart, que faz um dos colegas debochados, aproveita mal a liberdade, fazendo uso constante de palavrões que, embora eficientes no imediato, diluem o alcance da peça.
Assim, a montagem soa como exercício inteligente, que concilia o teatrão com o experimental, mas que não se leva muito a sério. Corre o risco de parecer piada sem final, que deleita os que já conheciam o conto, mas que é pouco eficiente em convencer os que não o conheciam. Uma piada interna para a elite intelectual -o que não é pouco, afinal de contas.

O ESCRIVÃO    
Direção: Antônio Abujamra
Elenco: Miguel Hernandez, Marcelo Galdino, Adriano Stuart
Quando: sex., às 21h30; sáb., às 21h; e dom., às 19h
Onde: Teatro Aliança Francesa (r. General Jardim, 182, Vila Buarque, tel. 3188-4141)
Quanto: R$30


Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.