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CINEMA
Crítica/"Espelho Mágico"
Jovial, Oliveira ri da vaidade humana
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Em seus filmes, Manoel
de Oliveira já fez drama
e comédia, já viajou no
tempo, percorreu a história do
Ocidente e deixou-se levar pela
melancolia portuguesa, enveredou pelo teatro e pela poesia.
A cada novo filme não sabemos
o que esperar. E ele sempre termina por surpreender.
No caso de "Espelho Mágico"
as surpresas se acumulam ao
longo da trama. Tudo começa
em tom grave no interior de um
presídio onde, basicamente, se
discute filosofia. O diretor, que
cultiva cactos, gosta de palestrar com o suave presidiário
Luciano (Ricardo Trepa). Este,
por sua vez, aprecia as conversas com o vingativo Américo.
Parece que vamos assistir algo à maneira de Robert Bresson. Subitamente, porém, o
curso é desviado: Luciano sai
da cadeia e é levado pelo irmão
a trabalhar na casa de Alfreda
(Leonor Silveira), uma milionária que dedica o essencial de
seu tempo à fé e a receber conselhos de teólogos como o professor Heschel (Michel Piccoli)
e o padre Clodel (Lima Duarte).
É do primeiro que vem a teoria de que Nossa Senhora poderia muito bem ser uma mulher
rica como Alfredo. Tal idéia
embala o sonho maior da carola: receber uma aparição da Virgem Maria. Boa teoria: se ela
apareceu até para uns pastorzinhos em Fátima antes, por que
não para ela?
Aos poucos, enquanto cresce
a obsessão de Alfreda, muda o
registro do filme. E Oliveira parece contemplar sorrindo este
mundo meio fora do tempo, onde a riqueza é só um atalho para
o reino de Deus. Um mundo fútil, a rigor, e vaidoso, mas antes
de tudo mimado: Alfreda quer
ver a Virgem Maria assim como
uma criança quer o brinquedo
da vitrine ou seu marido quer
financiar futuros músicos.
É então que aparece em cena
Filipe Quinta (Luís Miguel Cintra), o falsário, velho conhecido
da cadeia, a quem Luciano conta sobre as manias da patroa.
Cínico, Filipe trata de transformar a obsessão em realidade e
sai à cata de uma Virgem Maria,
que encontra na pessoa de Vicenta (Leonor Baldaque).
O filme divide-se em três
partes. A primeira, dedicada à
cadeia; a segunda, à casa de Alfreda; a terceira, a Filipe Quinta. Nenhum desses três momentos narrativos se completa.
Da primeira parte, restará Luciano, mas o diretor e Américo
desaparecerão sem deixar rastro. Da segunda, restam Alfreda
e o marido, mas desaparecem
os padres, tão marcantes no
início. Por fim, a própria Virgem de Filipe Quinta, se não
desaparece, passa por uma espécie de desvio de função.
Se ri da fé vaidosa de sua rica
carola -e, por extensão, da importância que certas pessoas
dão a si mesmas-, Oliveira
também ri da ortodoxia narrativa: ao truncar a história, ao
abandonar certos fios, ele se
desfaz das regras que oprimem
o cinema tanto quanto podem
oprimir os homens. Em troca,
postula a liberdade, o prazer, o
gosto pela amizade, pelos personagens que ali estão apenas
porque os ama (ou aos seus atores, o que dá quase no mesmo).
Não é só porque se passa de clichês que um homem é "sério".
Aos 97 anos, Manoel de Oliveira parece cada vez mais inventivo e moleque.
ESPELHO MÁGICO
Direção: Manoel de Oliveira
Produção: Portugal, 2005
Com: Leonor Silveira, Lima Duarte
Quando: em cartaz no Cine Bombril, Sala UOL e circuito
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