São Paulo, segunda, 7 de setembro de 1998

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CRÍTICA
"Soldado Ryan" é síntese dos filmes de guerra

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Todo filme do diretor norte- americano Steven Spielberg é um embate entre o talento e a babaquice -e a babaquice quase sempre vence no fim.
Assim é "O Resgate do Soldado Ryan", que pode ser considerado, entretanto, um dos grandes dramas de guerra que o cinema norte- americano é capaz de produzir de tempos em tempos.
Para que o filme seja levado a sério, é preciso desde logo esquecer o prólogo e o epílogo, ambientados no presente.
Piegas, militaristas, patrioteiros, eles representam o que de pior Spielberg tem a dar.
Mas o que é que torna "Soldado Ryan", a despeito de seu reacionarismo congênito, um filme que merece ser visto e que, provavelmente, permanecerá vivo ao longo das décadas?
Não é somente a filmagem de impacto das cenas de batalha, embora esse seja o trunfo mais imediato e irresistível do filme. Há nele um mérito de outra ordem: como acontece com um ou dois filmes a cada década, "Soldado Ryan" atinge a dimensão de um paradigma, e ilumina retrospectivamente todo um gênero cinematográfico.
"O Resgate do Soldado Ryan" é a quintessência de todos os filmes americanos convencionais de guerra (o que exclui obras de exceção, como "Apocalipse Now" e "Nascido para Matar"). Vamos tentar esclarecer por quê.
O enredo é simples: depois de participar do sangrento desembarque aliado na costa da Normandia, no chamado "Dia D" da Segunda Guerra Mundial, um grupo de soldados liderados pelo tenente Miller (Tom Hanks) recebe a missão de resgatar, além das linhas inimigas, o pára-quedista Ryan (Matt Damon) e mandá-lo de volta a sua casa, nos EUA.
A mãe do soldado, uma típica dona-de-casa do interior da América, perdeu os outros três filhos em combate na mesma guerra.
O chefe do estado-maior do Exército americano julga que salvar o último filho da sra. Ryan terá um efeito simbólico poderoso, que pode ser traduzido assim: a América não abandona seus filhos, "um por todos, todos por um" etc.
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Ideologia disfarçada Há aqui uma operação ilusionista que consiste em ocultar objetivos político-propagandísticos (mostrar os americanos como moralmente superiores, elevar o moral da tropa, acalmar a população civil), disfarçando-os em missão humanitária e ética: a salvação de um pobre "American boy" perdido entre as balas inimigas.
Spielberg assume como sua essa mesma operação. Aí está a chave dramatúrgica, moral e estética de seu filme, e é aí também que ele expõe toda a anatomia do cinema bélico norte-americano.
O artifício dramático básico dos dramas de guerra consiste em destacar do anonimato, colocando-os em primeiro plano, alguns indivíduos do "nosso time": o sargento durão, o intelectual desajeitado e medroso, o galã inconsequente, o soldado heróico, o comandante angustiado.
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Seres do mal O exército inimigo, por sua vez, é retratado indistintamente e sem relevo, como os seres "do mal" que temos de eliminar nos videogames para seguir no jogo.
Todo o drama de "Soldado Ryan" baseia-se nessa dialética entre o indivíduo e a massa, a identidade humana e o anonimato coletivo. Morreram milhões de pessoas na guerra, mas quem se importa? Nos anos 20, Borges já observava que o cinema americano havia aprendido que "a multidão é menos que um homem".
Não é só nos diálogos que o filme discute a toda hora se "vale a pena sacrificar todo um grupo por apenas um indivíduo". Sua própria linguagem visual baseia-se nessa polarização -e acaba, claro, optando pelo indivíduo, na mais evidente transposição cinematográfica da ideologia liberal norte-americana.
Temos a impressão de assistir a dois filmes ao mesmo tempo: um (o das alucinantes cenas de batalha) que mostra, num hiper-realismo quase intolerável, a destruição de corpos anônimos; outro, que encena o melodrama de indivíduos-tipo, com os quais nos identificamos sentimentalmente.
No primeiro desses filmes, prevalece o talento de Spielberg para criar imagens fortes e originais. No segundo, seu sentimentalismo patriótico e reacionário.
Quando faz do cinema sua pátria, Spielberg pode ser -e frequentemente é- um grande artista.
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Filme: O Resgate do Soldado Ryan Produção: EUA, 1998 Direção: Steven Spielberg Elenco: Tom Hanks, Matt Damon, Ed Burns Onde: pré-estréia hoje, nos cines Aricanduva 4, Morumbi 4, Metrô Tatuapé 4, Interlar Aricanduva 9 e SP Market 10


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