São Paulo, sábado, 08 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA/"QUE FIZ EU PARA MERECER ISTO?"

Longa fecha fase irregular de Almodóvar

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Carlos Saura havia feito "Carmen" (1983). Com "A Colméia" (1982), Mario Camus recebera o Urso de Ouro no Festival de Berlim, que atribuiria mais tarde o prêmio de melhor ator a Fernando Fernán-Gómez por "Stico" (1984), de Jaime de Armiñán. José Luis Garci ganhara o Oscar de filme em língua não-inglesa por "Começar de Novo" (1982).
Caminhava bem a produção espanhola de prestígio internacional com a chegada dos socialistas ao poder, em 1982, e a escolha da cineasta Pilar Miró (1940-1997), que havia trabalhado na campanha eleitoral, para chefiar o órgão estatal de cinema. Os novos ares, acompanhados de verbas para financiamento, começavam a beneficiar veteranos e jovens.
Era esse o cenário favorável em que Pedro Almodóvar, então com 35 anos, lançava "Que Fiz Eu para Merecer Isto?" (1984). Ali, se encerrava o ciclo irregular de experimentação que inclui "Pepi, Luci e Bom" (1980), "Labirinto de Paixões" (1982) e "Maus Hábitos" (1983). "Matador" (1986) e "A Lei do Desejo" (1987), seus filmes seguintes, dariam início à bem-sucedida transição do cineasta para um lugar no centro da produção espanhola.
Até então, Almodóvar ocupava ainda posição periférica. Era visto como um corpo estranho, difícil de classificar. Embora houvesse o reconhecimento de que em seus filmes iniciais pulsava um universo peculiar, restrições severas -algumas em caráter condenatório- eram feitas a sua capacidade de organizar narrativas em torno de personagens e situações incomuns.
"Que Fiz Eu para Merecer Isto?" condensa essa tensão no momento em que ela começava a se resolver. No fundo, é dela que se trata. Por um lado, reaparece o catálogo de comportamentos bizarros, em ambiente às vezes surrealista, que imprimira feição particular aos três primeiros longas do cineasta. De outro, o cenário social é quase neo-realista -apartamentos claustrofóbicos em um bairro-dormitório de Madri.
A vida privada da classe operária, recriada por alguém mais próximo de Freud, Salvador Dalí e Luis Buñuel (sem falar em Alfred Hitchcock e Douglas Sirk) do que de Marx, Roberto Rossellini e Vittorio De Sica. Carmen Maura, que já havia feito "Pepi, Luci e Bom" e "Maus Hábitos", reaparece aqui como a protagonista, revezando as máscaras de mãe, mulher, amante, nora, faxineira e vizinha. Em torno dela, um punhado de figuras -algumas caricaturais, outras bem desenhadas- encena um balé de coreografia incomum, em que não se sabe direito quem dança com quem.
O ponto talvez seja, para usar verbo-chave em sua filmografia, notar quem deseja quem (ou o quê). A cadeia inclui um manuscrito falso atribuído a Hitler, criança com poderes sobrenaturais, adolescentes precocemente inseridos no mundo adulto, mulheres insatisfeitas, homens ausentes ou impotentes. A essa altura Almodóvar ainda dedicava mais atenção às partes do que ao todo. A partir de "Matador" e de "A Lei do Desejo", as partes geram organicamente o todo.


Que Fiz Eu para Merecer Isto?
¨Qué He Hecho Yo para Merecer Esto?
  
Direção: Pedro Almodóvar
Produção: Espanha, 1984
Com: Carmen Maura, Luis Hostalot


Texto Anterior: Cinema/Crítica: Processo de revelação guia "A Grande Viagem"
Próximo Texto: Teatro/Crítica: Didatismo limita alcance de "O Fingidor"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.