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TEATRO
"Três Versões da Vida" ganha montagem com a atriz Denise Fraga e conjuga astrofísica e crise de relações
Perdidos no espaço
DA REPORTAGEM LOCAL
"O que importa é a impressão
de sala de estar", observa a dramaturga francesa Yasmina Reza,
43, logo na primeira rubrica de
"Três Versões da Vida" ("Trois
Versions de la Vie", 2000).
Primeiras, segundas, terceiras,
as impressões vão e vêm na comédia que ganha primeira montagem em São Paulo. Abre com a cena típica da família classe média.
O filho chora no quarto. Na sala, o
casal Sônia e Henrique se entedia
com as razões sobre comer biscoito na cama ou não para acudir (ou
não) o garoto.
Essa impressão sobre cenas de
um casamento infeliz sucumbe
assim que Humberto e Inês tocam a campainha. Visita surpresa
que vai embaralhar todas as impressões de uma noite sideral.
O texto caiu nas mãos do ator
Marco Ricca (Henrique), que logo
tratou de arregimentar o elenco
com tino de comediante: Denise
Fraga (Sônia), Ilana Kaplan (Inês)
e Mario Schöemberger (Humberto). Eles são dirigidos por Elias
Andreato, em temporada que segue até o final do ano.
Reza costura três versões desse
encontro na sala de estar de Sônia
e Henrique. Este é um astrofísico,
assistente de pesquisa num instituto. Está prestes a publicar um
texto revelador sobre o achatamento dos halos galácticos.
Segundo o dicionário "Aurélio", halos é uma "designação comum a uma grande variedade de
meteoros luminosos constituídos
de círculos ou arcos de círculos
brilhantes, tendo por centro o Sol
ou a Lua, e causados pela reflexão
ou refração da luz solar ou lunar
em cristais de gelo em suspensão
na atmosfera terrestre".
Mas cosmologia não será a tônica dominante. As teses sobre o
universo servem de pano de fundo para descer aos assuntos mais
comezinhos da vida a dois. "A peça é extremamente simples. Galileu [Galilei, astrônomo e físico italiano, 1564-1662] já dizia que pensar é um dos maiores prazeres da
raça humana. Yasmina levou isso
a sério", afirma Andreato, 48.
"Impressiona como ela brinca
com esses conhecimentos adquiridos, mas também revela o cotidiano que não vemos, as coisas
ocultas, o jogo social armado, o
escamoteamento da verdade."
Sônia e Henrique formam um
casal de classe média. O sonho dele é ascender profissional e socialmente. Ela, advogada inativa, reclama outras ambições.
Inês e Humberto pertencem a
uma classe social mais estabelecida. Ele é um renomado cientista-pesquisador de um laboratório,
referência na astrofísica. Inês, dona-de-casa. Desde a postura dos
pais para com a criança "mimada" que segue chorando, passando pela sugestão de traição e da
correlação de forças entre Sônia e
Humberto, são muitas as pistas
deixadas por Reza.
O que se fala numa primeira
versão da história é modificado
ou subtraído na segunda, e assim
também na terceira, de modo que
as situações e os personagens,
após alguns goles a mais, vão ganhar leitura mais consistente
quando o espetáculo chegar ao final e o espectador levar para casa
o mosaico que montou.
As mulheres de Reza jogam por
igual com os homens. Estão lá os
disparates machistas, replicados
com inteligência e sarcasmo. Inês,
a personagem de Ilana Kaplan,
talvez a mais subestimada, sai-se
com a seguinte fala, deixando a
todos boquiaberto:
"Olha, pelo que me diz respeito
-e, já que devo ter bebido tanto
quanto você, Henrique, lá vai-,
eu não concordo de jeito nenhum. Você provavelmente vai
dar risada, mas e daí? O meu marido cai na gargalhada ou suspira
toda vez que eu abro a boca -a
nossa relação tá indo pro ralo, pra
que ficar escondendo? Bom, eu
não concordo que o homem seja
uma parte tão insignificante do
universo. O que seria do universo
sem a gente? Um lugar deprimente e escuro, sem um pingo de poesia. É a gente que dá nome pra ele,
a gente, o ser humano, é a gente
que concebe esse labirinto cheio
de buraco negro e estrela morta,
com o infinito, a eternidade, as
coisas que ninguém consegue ver,
é a gente que faz do universo essa
vertigem". "Inumilhável", como
brincam entre eles, que fazem do
senso de (des)proporção a nova
ordem nas relações.
Não importa qualquer lógica,
psicologismo. "Nisso, a peça se
parece muito com a nossa profissão. No teatro, estamos há séculos
discutindo o ser humano com a
mesma intensidade de um astrônomo diante de um telescópio,
tentando descobrir os segredos
do universo. Só que o nosso é o interno", diz Andreato.
(VALMIR SANTOS)
TRÊS VERSÕES DA VIDA. De: Yasmina
Reza. Tradução: Mário Vilela. Direção:
Elias Andreato. Com: Denise Fraga,
Marco Ricca, Mario Schöemberger e Ilana
Kaplan. Onde: teatro Renaissance (al.
Santos, 2.233, Cerqueira César, tel. 3123-1751). Quando: estréia hoje, para
convidados; sex., às 21h30; sáb., às 21h; e
dom., às 19h. Quanto: R$ 40 e R$ 50
(sáb.). Até 21/12.
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