São Paulo, sábado, 10 de abril de 2004

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DANÇA/CRÍTICA

Gabriel Castillo coloca em jogo os problemas da vida diária

Cia. 2 encena crises cotidianas

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Um túnel preto, baixo e estreito leva a um ambiente claro e amplo, onde uma moça anuncia o bingo e um rapaz abraça os escolhidos que chegam.
Assim começa "Lei de Nada", conquistando a cumplicidade da platéia. Em cartaz desde o dia 3 de abril (até dia 18), o espetáculo da Cia. 2 do Balé da Cidade de São Paulo tem concepção e direção do venezuelano Gabriel Castillo.
Confissões, pequenas crises da vida diária, questionamentos humanos postos em jogo de forma escancarada: cada um dos oito intérpretes criou suas cenas num registro onde questões sociais se cruzam e traduzem nos limites físicos.
A sucessão de cenas e mais cenas vai compondo um mosaico: Osmar Zampieri entra com uma escada na mão, anda em círculos, pára, tira a roupa quase toda; então surge Mara Mesquita, carregando uma mala, de salto alto, calcinha e sutiã. Maurício Martins canta e chama a platéia para cantar com ele. Lilia Shaw grita os números de um bingo impossível. Raymundo Costa se afoga com o som forte de água, enquanto Cláudia Palma lhe oferece copos d'água. Armando Aurich pergunta se seu coração está vivo, e Andréa Maia comenta os prazeres do casamento. O grupo se reúne para cantar parabéns monocordicamente, numa falsa comemoração.
"Lei de Nada" assume o risco da teatralização excessiva, a partir daquilo que o trabalho tem de mais escandaloso. As "verdades" da vida são sempre matéria perigosa, para quem se entrega em cena ao jogo da sabedoria. E o ritmo, aqui, vira um instrumento difícil de expressão: se cada cena é enxuta e concisa, o tempo da peça como um todo resulta largo, talvez excessivo.
A Cia. 2, formada por bailarinos com anos de experiência no Balé da Cidade, busca ampliar as possibilidades de linguagem da dança. Para tal, vale-se não apenas dos movimentos -gestos, passos-, mas da fala, da interpretação e do canto.
O corpo descobre outros instrumentos; e o corpo é o espelho, onde o que se vê é reflexo de onde bate a luz. Não poderia haver projeto mais meritório, em que pesem eventuais limitações. O cenário de Daniela Thomas e Patrícia Rabatt tem papel fundamental nesse contexto: uma casa aberta, que instala um clima de consumo humano, de troca, assim como de recolhimento e revelação. Por exemplo, no duo de Andréa Maia e Armando Aurich, que se passa através de um vidro, no alto da cena, os dois parecem roubar seu entendimento da superfície, deixando aparecer o que está atrás.
A luz de André Boll sugere bem mais que contornos estáveis, ou fragmentos desbotados dos movimentos; por vezes quase imperceptível, dá densidade e acentua os sentidos.
A passagem está aberta, do formal ao afetivo, num terreno instável. Independentemente da linguagem explorada, talvez ainda falte encontrar, no silêncio como no ruído, uma fala mais justa dos corpos.


Lei de Nada
  
Direção: Gabriel Castillo
Com: Cia. 2 do Balé da Cidade
Onde: Sesc Pompéia (r. Clélia, 93, tel. 3871-7700
Quando: hoje, 15, 16 e 17, às 21h e amanhã e 18 às 18h30
Quanto: de R$ 3,00 a R$ 10,00



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