São Paulo, quarta-feira, 10 de agosto de 2011

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CRÍTICA MÚSICA ERUDITA

Angela Hewitt executa a obra-prima "Variações Goldberg" com serenidade


UMA SERENIDADE EMERGE DO BACH DE ANGELA HEWITT; PARA ELA CABE CONSTRUIR UMA EXPERIÊNCIA CONTÍNUA E COMPARTILHÁVEL A PARTIR DA FRAGILIDADE DE UM RECITAL AO VIVO


SIDNEY MOLINA
CRÍTICO DA FOLHA

Cada variação "abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável": os versos de Drummond (1902-87) podem ajudar a descrever o efeito das "Variações Goldberg" domingo na Sala São Paulo.
Mais de uma hora após o início, a pianista Angela Hewitt ainda percorria com calma e atenção as trilhas sinuosas da partitura publicada em 1741 por Johann Sebastian Bach (1685-1750).
A 30a variação foi tocada com alegria incomum, e o acorde final ficou no ar até quase morrer, durante um tempo que pareceu imenso, até que -sobre a pouca ressonância que restava- ela retomasse, do nada, a ária que havia dado início à travessia.
Para acompanhar o desenrolar de uma obra tão longa e complexa ajuda saber que as 30 variações são organizadas em blocos de três. Em cada tríptico, a primeira seção é mais dançante, a segunda, quase sempre virtuosística, e a terceira, um cânone.
Nesses cânones Bach exercita a maestria do contraponto: são imitações estritas, defasadas no tempo, calculadas entre as duas vozes mais agudas sobre a figuração perene da linha do baixo.
Escrita para um cravo de dois teclados, a composição foi pouco tocada por pianistas até que Glenn Gould (1932-82) a gravasse em 1955. Pouco antes de morrer, ele faria uma segunda versão, mais lenta e introspectiva.
Obcecado pela gravação e pelo disco como projeto sonoro, seus registros criam heterogeneidades súbitas, inesperadas, que prendem a atenção do ouvinte pelo virtuosismo inusitado e apostam em uma arquitetura inexplícita.

VIRTUOSE DO PIANO
Canadense como Gould, Angela Hewitt -que acaba de completar 53 anos- pensa o tema variado de Bach de modo totalmente diverso: para ela cabe construir uma experiência contínua e compartilhável a partir da fragilidade de um recital ao vivo.
Seguindo o formato do próprio tema, cada variação tem duas partes. Hewitt fez todas as repetições previstas na partitura, o que solicitou uma concentração redobrada do público.
A proporção nos andamentos escolhidos foi notável, mas vários momentos da performance podem ser ressaltados, como o contraponto inversível da "Variação no 5", o pronunciado "canone alla sesta" (no 18), e a escura no 25, que deixou a plateia praticamente sem respirar.
O próprio Drummond mencionou uma "calma pura", capaz de convidar "quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera". É uma serenidade assim que emerge do Bach de Angela Hewitt.
A ária com variações ocupou a totalidade do programa. Aplaudida, a pianista voltou para tocar "Jesus, Alegria dos Homens", talvez o único bis possível naquele momento de contemplação.

VARIAÇÕES GOLDBERG
AVALIAÇÃO ótimo


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