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São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 2003

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ERUDITO/CRÍTICA

Duo de pianistas húngaros se apresenta com a Osesp e faz recital na Sala São Paulo tocando Mozart e Bartók

A memória do horror e a sedução da perfeição

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Todo mundo que foi à Sala São Paulo anteontem foi para ouvir a "Sonata para Dois Pianos e Percussão" de Béla Bartók (1881-1945), uma das sete ou 17 maravilhas da música do século passado. A instrumentação é rara e as performances, escassas. Mais rara ainda a chance de ouvir o Bartók tocado com acento original, por dois conterrâneos tão provadamente bons como os pianistas Dezsö Ranki e Edit Klukon. Ninguém contava com Mozart (1756-91), no começo da noite; nem com o "Bolero" de Ravel (1875-1937), depois.
O Mozart dos húngaros foi a melhor coisa do programa? Provavelmente. Assim como o "Concerto" K. 365, que os dois tocaram com a Osesp quinta passada, a "Sonata em Fá Maior" soou luminosa, mas cheio de sombras; fluente, mas capaz de interromper a fluência com a sugestão de sentidos transcendentais. Exemplo: os dongiovanescos baixos no meio do terceiro movimento, contrastados às delicadas sequências barroquizantes no agudo.
Ranki e Klukon tocam um Mozart intensamente europeu. Mais que europeu, é o Mozart da Europa central, o compositor do império austro-húngaro, traduzido para o início do século 21 sem perder a memória das catástrofes, e nem por isso indiferente à sedução de formas perfeitas.
Sedução de formas seria o nome do jogo, também, para Ravel. Ninguém namorou a orquestra com maior refinamento. Tanto maior a curiosidade de escutar o "Bolero" nessa versão para dois pianos. Tudo o que, na partitura grande, vive das cores instrumentais, agora depende de outros elementos, como textura e dinâmica.
O efeito pode ser revelador, como nas melodias dobradas em intervalos dissonantes, ou nos acordes alterados paralelos: a música aparece devolvida ao íntimo de si. Perde em aroma, mas ganha em luz, um sol abrasador na areia espanhola do teclado. Se o andamento acelerou, isso era quase inevitável, depois de 15 minutos de tantantan-tantan-tã, e com aquele crescendo incrível no fim.
Intervalo e água. Depois, Bartók, com o duo acompanhado por dois excelentes percussionistas da Osesp, Elizabeth del Grande e Ricardo Righini (só identificados num rodapé do programa).
Na "Sonata", o quarteto fez música de câmara elegante e refinada, delicadíssima nos detalhes. Se faltou alguma coisa, foi explosão -mas isso tem de ser entendido como escolha. Ouvida assim, a "Sonata" ganha conotações de recolhimento que só redobram sua contundência, às vésperas da explosão do horror.


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