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ERUDITO/CRÍTICA
O retorno dos mortos-vivos na Sala São Paulo
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Estranha idéia: começar a
temporada com uma missa
dos mortos. Claro que ninguém
estava pensando nisso, no "foyer"
da Sala São Paulo na última quarta-feira. "Réquiem" de Verdi
(1813-1901) ou não, a massa estava
com sede de música, depois de
quase três meses de seca. Ao final
do concerto, talvez o espírito já
fosse outro; mas, nesse caso, era
efeito da arte, que faz pensar no
impensável até quando parece
impossível.
O "Réquiem" foi composto em
1874, em homenagem ao romancista Alessandro Manzoni (autor
de "Os Noivos"), que morrera no
ano anterior. Assim como ele,
Verdi tinha aspirações de fazer
uma arte verdadeiramente italiana e verdadeiramente popular.
Assim como ele, também, pregou
a unificação da Itália.
Essas idéias, no "Réquiem",
contam tanto ou mais do que a
transmigração da alma e o descanso eterno ("requiem aeternam" é o começo, em latim, do
"Intróito" da Missa dos Mortos:
"Descanso eterno concedei-lhes,
ó Senhor").
Virou clichê dizer que o "Réquiem" é mais ópera do que missa, mas a discussão parece um
tanto infundada. Até que ponto a
própria missa não é uma espécie
de ópera? -pergunta que um
compositor como Verdi só poderia responder com os meios que
ele mesmo desenvolveu para escrever sua música. Incluem, entre
muitos achados, o abandono da
dicotomia entre recitativo e ária.
Aqui tudo fala e tudo canta; e a
música se adapta a cada momento do drama.
Na interpretação do maestro
John Neschling, a missa-ópera ganhou contrastes imensos de luz e
sombra, dentro de um desenho
maciço, à moda antiga -onde
"antiga" quer dizer "européia", se
se pode fazer esse contraste tão
exagerado entre modos de entender a música de um e de outro lado do Atlântico. A escola americana recente faria um "Réquiem"
menos ponderoso, mais teatral,
ressaltando justamente a carga de
ópera. Aqui não se estava exatamente na igreja, mas também não
no teatro; era um entrelugar, onde
quem quisesse podia até falar com
os mortos.
Ou melhor: era esse o lugar imaginário a que se queria chegar e
que a Osesp, juntamente com seu
coro, mais o Coro da Fundação
Príncipe de Astúrias (da Espanha), fez soar em muitos momentos. Alguém dirá que, em outros, a
música soava um tanto presa. E
"presa" não é o mesmo que "controlada": controle, na música, é
uma das formas máximas de liberdade, um rigor conquistado,
que soa natural.
Solistas: a parte da leoa ficou
com a soprano armênia Hasmik
Papian. No concerto da última
quarta-feira, fez coisas lindas, trabalhando em especial as diferenças de dinâmica. Mas cantar é
mesmo uma loucura, e a voz nem
sempre conseguia manter todo
mistério concretamente no ar.
Bem concreto era o timbre da
contralto Mzia Nioradze (da
Geórgia), uma contralto de verdade, com vozeirão de cobre. Ficou
ao lado do ótimo tenor Miroslav
Dvorsky (do Teatro Nacional de
Bratislava) e do baixo italiano
Francesco Ellero D'Artegna, que
fez "Fausto" com a Osesp no ano
passado e foi chamado de última
hora, para substituir um contundido -e contundido estava ele:
de muletas. O quarteto fez tudo
com empenho.
Ao final do concerto, então, o
espírito já era outro; nem tudo ali
talvez tenha vibrado impensavelmente, mas o que se ouviu bastava para animar todos nós, mortos-vivos devolvidos mais uma
vez à música.
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