São Paulo, sábado, 11 de março de 2006

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ERUDITO/CRÍTICA

O retorno dos mortos-vivos na Sala São Paulo

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Estranha idéia: começar a temporada com uma missa dos mortos. Claro que ninguém estava pensando nisso, no "foyer" da Sala São Paulo na última quarta-feira. "Réquiem" de Verdi (1813-1901) ou não, a massa estava com sede de música, depois de quase três meses de seca. Ao final do concerto, talvez o espírito já fosse outro; mas, nesse caso, era efeito da arte, que faz pensar no impensável até quando parece impossível.
O "Réquiem" foi composto em 1874, em homenagem ao romancista Alessandro Manzoni (autor de "Os Noivos"), que morrera no ano anterior. Assim como ele, Verdi tinha aspirações de fazer uma arte verdadeiramente italiana e verdadeiramente popular. Assim como ele, também, pregou a unificação da Itália.
Essas idéias, no "Réquiem", contam tanto ou mais do que a transmigração da alma e o descanso eterno ("requiem aeternam" é o começo, em latim, do "Intróito" da Missa dos Mortos: "Descanso eterno concedei-lhes, ó Senhor").
Virou clichê dizer que o "Réquiem" é mais ópera do que missa, mas a discussão parece um tanto infundada. Até que ponto a própria missa não é uma espécie de ópera? -pergunta que um compositor como Verdi só poderia responder com os meios que ele mesmo desenvolveu para escrever sua música. Incluem, entre muitos achados, o abandono da dicotomia entre recitativo e ária. Aqui tudo fala e tudo canta; e a música se adapta a cada momento do drama.
Na interpretação do maestro John Neschling, a missa-ópera ganhou contrastes imensos de luz e sombra, dentro de um desenho maciço, à moda antiga -onde "antiga" quer dizer "européia", se se pode fazer esse contraste tão exagerado entre modos de entender a música de um e de outro lado do Atlântico. A escola americana recente faria um "Réquiem" menos ponderoso, mais teatral, ressaltando justamente a carga de ópera. Aqui não se estava exatamente na igreja, mas também não no teatro; era um entrelugar, onde quem quisesse podia até falar com os mortos.
Ou melhor: era esse o lugar imaginário a que se queria chegar e que a Osesp, juntamente com seu coro, mais o Coro da Fundação Príncipe de Astúrias (da Espanha), fez soar em muitos momentos. Alguém dirá que, em outros, a música soava um tanto presa. E "presa" não é o mesmo que "controlada": controle, na música, é uma das formas máximas de liberdade, um rigor conquistado, que soa natural.
Solistas: a parte da leoa ficou com a soprano armênia Hasmik Papian. No concerto da última quarta-feira, fez coisas lindas, trabalhando em especial as diferenças de dinâmica. Mas cantar é mesmo uma loucura, e a voz nem sempre conseguia manter todo mistério concretamente no ar.
Bem concreto era o timbre da contralto Mzia Nioradze (da Geórgia), uma contralto de verdade, com vozeirão de cobre. Ficou ao lado do ótimo tenor Miroslav Dvorsky (do Teatro Nacional de Bratislava) e do baixo italiano Francesco Ellero D'Artegna, que fez "Fausto" com a Osesp no ano passado e foi chamado de última hora, para substituir um contundido -e contundido estava ele: de muletas. O quarteto fez tudo com empenho.
Ao final do concerto, então, o espírito já era outro; nem tudo ali talvez tenha vibrado impensavelmente, mas o que se ouviu bastava para animar todos nós, mortos-vivos devolvidos mais uma vez à música.


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