São Paulo, sábado, 11 de setembro de 2004

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TEATRO/CRÍTICA

Cia. Balagan encena montagem essencial de texto de Alessandro Toller, sem nenhum traço maniqueísta

"Tauromaquia" faz investigação da virilidade

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Com a serenidade dos veteranos, Walter Breda sobe ao palco na penumbra para puxar o aboio -essa simulação vaqueira do mugir que perpassa o humano e atinge Deus, em sintonia com o plangente canto na madrugada dos minaretes islâmicos, assim como o berrante prolonga o chamado judaico do shoffar.
Assim começa "Tauromaquia", unindo arquetipicamente o homem, o animal e o divino. A vida se apresenta aqui como uma travessia do deserto, a descoberta de si pelo enfrentamento do mundo, e o sertão brasileiro vira o mar de Homero. Breda desperta o elenco que se une ao canto com a mesma entrega, em rara sintonia de intensidade, e como o "Iô" de Dioniso o aboio desperta ecos que ainda vibram no palco do Sesc Anchieta: o roseano "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", de Antunes Filho, e a apropriação física do mito presente no "Epigoni" do Attis Theatre.
Além de terceiro sinal, o aboio é também o choro do recém-nascido. A jornada dos vaqueiros tocando gado, enraizada no folclore (o ponto de partida da montagem foi "Vaqueiros e Cantadores", de Câmara Cascudo), vai muito além da reconstituição pitoresca: cada etapa da viagem pode ser decodificada como uma etapa no ciclo da vida, tal um ritual de iniciação.
Sem soar hermética, a montagem apresenta então o despertar da sexualidade do vaqueiro de primeira viagem (Tomas Vinicius, desarmante de simplicidade), a disputa pela mesma mulher separando amizades (com Daniel Ribeiro e Cláudio Queiroz, intensos), até a rendição na senilidade diante da aspereza do mundo, pelo carismático Ivaldo de Melo.
Cheirando a couro, a suor, "Tauromaquia" é uma investigação sobre a virilidade, o que pode surpreender os que acompanham a trajetória da Cia. Teatro Balangan, de Maria Thaís, sempre tão feminina na sensibilidade.
O que a montagem comprova, no entanto, é que o universo feminino e masculino têm desafios e sensibilidades complementares. Provam isso as duas atrizes que experimentam ser homens: Melissa Vettore faz um vaqueiro arlequinesco, contagiante de simpatia em seu burro Mussolini, e Lucia Romano é fascinantemente ambígua como uma Diadorim. Ao contrário das mulheres, que encontram sua força na clausura doméstica, os homens enfrentam sua fragilidade na travessia do deserto, o grande labirinto, segundo o conceito de Borges.
O domínio da diretora Maria Thaís da biomecânica de Meyerhold, reforçado pela precisão da técnica do Nô passada por Alice K, desenha nos corpos a complexa geografia; enquanto o belíssimo figurino de Márcio Medina e a luz de Lúcia Chedieck viabilizam o texto de Alessandro Toller, trabalhado em conjunto com os atores sob supervisão de Luís Alberto de Abreu, que às vezes estala como um chicote: "Há mulheres que põem a gente no mundo, e há mulheres que põem o mundo na gente".
A entrega à morte como um estouro de boiada é a inevitável etapa final. Não chega a ser amarga, já que não se trata aqui de uma maniqueísta lição de moral. Não há mensagem, mas constatação: viver, como dizia Guimarães Rosa, é muito perigoso. "Tauromaquia" é essencial e atemporal como uma pintura rupestre.


Tauromaquia
    
Direção: Maria Thaís
Com: cia. Teatro Balagan
Onde: teatro Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, tel. 0/xx/11/3234-3000)
Quando: sex. e sáb, às 21h ; dom., às 20h; até 19/9
Quanto: R$ 20



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