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TEATRO/CRÍTICA
Cia. Balagan encena montagem essencial de texto de Alessandro Toller, sem nenhum traço maniqueísta
"Tauromaquia" faz investigação da virilidade
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Com a serenidade dos veteranos, Walter Breda sobe ao
palco na penumbra para puxar o
aboio -essa simulação vaqueira
do mugir que perpassa o humano
e atinge Deus, em sintonia com o
plangente canto na madrugada
dos minaretes islâmicos, assim
como o berrante prolonga o chamado judaico do shoffar.
Assim começa "Tauromaquia",
unindo arquetipicamente o homem, o animal e o divino. A vida
se apresenta aqui como uma travessia do deserto, a descoberta de
si pelo enfrentamento do mundo,
e o sertão brasileiro vira o mar de
Homero. Breda desperta o elenco
que se une ao canto com a mesma
entrega, em rara sintonia de intensidade, e como o "Iô" de Dioniso o aboio desperta ecos que
ainda vibram no palco do Sesc
Anchieta: o roseano "A Hora e a
Vez de Augusto Matraga", de Antunes Filho, e a apropriação física
do mito presente no "Epigoni" do
Attis Theatre.
Além de terceiro sinal, o aboio é
também o choro do recém-nascido. A jornada dos vaqueiros tocando gado, enraizada no folclore
(o ponto de partida da montagem
foi "Vaqueiros e Cantadores", de
Câmara Cascudo), vai muito além
da reconstituição pitoresca: cada
etapa da viagem pode ser decodificada como uma etapa no ciclo
da vida, tal um ritual de iniciação.
Sem soar hermética, a montagem apresenta então o despertar
da sexualidade do vaqueiro de
primeira viagem (Tomas Vinicius, desarmante de simplicidade), a disputa pela mesma mulher
separando amizades (com Daniel
Ribeiro e Cláudio Queiroz, intensos), até a rendição na senilidade
diante da aspereza do mundo, pelo carismático Ivaldo de Melo.
Cheirando a couro, a suor,
"Tauromaquia" é uma investigação sobre a virilidade, o que pode
surpreender os que acompanham
a trajetória da Cia. Teatro Balangan, de Maria Thaís, sempre tão
feminina na sensibilidade.
O que a montagem comprova,
no entanto, é que o universo feminino e masculino têm desafios e
sensibilidades complementares.
Provam isso as duas atrizes que
experimentam ser homens: Melissa Vettore faz um vaqueiro arlequinesco, contagiante de simpatia
em seu burro Mussolini, e Lucia
Romano é fascinantemente ambígua como uma Diadorim. Ao
contrário das mulheres, que encontram sua força na clausura doméstica, os homens enfrentam
sua fragilidade na travessia do deserto, o grande labirinto, segundo
o conceito de Borges.
O domínio da diretora Maria
Thaís da biomecânica de Meyerhold, reforçado pela precisão da
técnica do Nô passada por Alice
K, desenha nos corpos a complexa geografia; enquanto o belíssimo figurino de Márcio Medina e a
luz de Lúcia Chedieck viabilizam
o texto de Alessandro Toller, trabalhado em conjunto com os atores sob supervisão de Luís Alberto
de Abreu, que às vezes estala como um chicote: "Há mulheres
que põem a gente no mundo, e há
mulheres que põem o mundo na
gente".
A entrega à morte como um estouro de boiada é a inevitável etapa final. Não chega a ser amarga,
já que não se trata aqui de uma
maniqueísta lição de moral. Não
há mensagem, mas constatação:
viver, como dizia Guimarães Rosa, é muito perigoso. "Tauromaquia" é essencial e atemporal como uma pintura rupestre.
Tauromaquia
Direção: Maria Thaís
Com: cia. Teatro Balagan
Onde: teatro Sesc Anchieta (r. Dr. Vila
Nova, 245, tel. 0/xx/11/3234-3000)
Quando: sex. e sáb, às 21h ; dom., às
20h; até 19/9
Quanto: R$ 20
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