São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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Cinemateca exibe "Fragmentos de Vida", raro filme de 1929, dirigido por José Medina

Testemunha ocular

Foto divulgação
Cena da comédia 'Fragmentos de Vida', de José Medina, presente em ciclo da Cinemateca


INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

José Medina teve a mesma sorte que a maior parte dos cineastas brasileiros da época muda: seus três longas-metragens desapareceram no incêndio de um laboratório, segundo informa José Inácio de Melo Souza na "Enciclopédia do Cinema Brasileiro".
O que restou serve para situá-lo como, provavelmente, o mais talentoso dos realizadores paulistas dos anos 20. "Fragmentos de Vida", comédia que a Cinemateca Brasileira exibe hoje, é uma bela demonstração desse talento.
Medina narra ali a história de um vagabundo que tenta, de todos os modos, ser preso e passar uns tempos como "pensionista do governo". Tem a seu lado um amigo, amoral, que não se aperta e prefere roubar para sobreviver.
O problema é que o vagabundo faz a barba -para chegar apresentável à prisão- e adquire com isso um ar respeitável. De modo que cada má ação que pratica tende a torná-lo cada vez mais bem-visto, cada vez mais um cidadão acima de qualquer suspeita.
Pode-se ver essa fábula a partir da premissa do reacionarismo paulista -não estaremos longe dessa gente que considera a cadeia uma pensão estatal para vagabundos; essa visão se encaixa com o outro filme conhecido de Medina, "Exemplo Regenerador"-, padrão de caretice. O final irônico, no entanto, dá conta de uma evolução evidente.
É possível vê-lo de outra forma: o filme é feito em 1929, momento de transformação de São Paulo em uma grande cidade, onde as pessoas se tornam desconhecidas umas das outras, onde distinguir o homem de respeito do vigarista se torna um problema.
O essencial de Medina, no entanto, vem da decupagem -a divisão do filme em planos-, setor em que é mestre. É um realizador que sabe como poucos dispor sua câmera de acordo com a intensidade da cena, passar de um plano a outro com elegância, colocar essas virtudes a serviço da fluência da narrativa. Conjuga essas qualidades a uma direção de atores cheia de imaginação. Que a imaginação venha dele ou dos atores importa pouco: o certo é que em "Fragmentos de Vida" o quadro está sempre animado por um gesto ou expressão que lhe dão graça.
Medina (1894-1980) abandonou o cinema em seguida, e se dedicou sobretudo ao rádio, onde chegou chamado por Octavio Gabus Mendes, outro talento que também optou por deixar o cinema.

Marginal
"Fragmentos de Vida" faz programa hoje com "Meteorango Kid, Herói Intergalático", de André Luiz Oliveira, e "Bang-Bang", de Andrea Tonacci. São dois dos principais exemplares do cinema dito marginal que existiu no Brasil entre o fim dos 60 e o começo dos 70. Ao contrário de "Fragmentos", os dois foram exibidos em São Paulo há não muito tempo. Ambos são talentosíssimos, e quem não pôde vê-los não deve desprezar essa oportunidade.
Convém lembrar que esses filmes estão inseridos num ciclo que marca a reabertura da Sala Cinemateca. A Cinemateca Brasileira, que passou por momentos atrozes, vive uma de suas melhores fases, com a consolidação da sede própria do Matadouro e a inauguração do Arquivo de Matrizes.
Com o setor de preservação mais estável, espera-se que seja possível à instituição voltar a dedicar-se à difusão e abrir o seu baú. Entre brasileiros e estrangeiros, existem ali muitas raridades a serem dadas a ver ao público.


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