São Paulo, domingo, 12 de abril de 2009

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Crítica/"Tony Manero"

Obcecado por John Travolta, assassino ocasional é metáfora do autoritarismo

Divulgação
Alfredo Castro interpreta o violento Raúl em "Tony Manero"

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Associar a vida cotidiana sob a ditadura chilena de Augusto Pinochet ao personagem de John Travolta em "Os Embalos de Sábado à Noite" pode parecer mera extravagância de diretor iniciante com ambição de impressionar públicos de festivais.
Mas o resultado da mistura em "Tony Manero" é um filme que abala a crença na eficácia de toda a onda de "cinema político" com foco na reconstituição histórica das ditaduras de Chile, Brasil e Argentina.
É bom não esperar fidelidade a fatos nem denúncias de abusos desumanos como a tortura. Os poucos milicos que aparecem em cena também não têm cara de carrascos nazistas.
Raúl, o desocupado protagonista que vive obcecado com a figura e as coreografias de John Travolta, é um personagem muito mais assustador.
Provoca medo a violência com que ele ataca suas vítimas, assassinatos ocasionais por meio dos quais satisfaz demandas miúdas, tais como ter um aparelho de TV para ver um programa de auditório ou eliminar o projecionista que ousou substituir "Os Embalos de Sábado à Noite" por "Grease". E mais ainda pelo caráter ordinário da sua existência e daqueles que o cercam.
Vemos ali uma miséria que não se resume aos ambientes degradados e às trapaças que os personagens usam para sobreviver. Vemos também a onipresença de um ciclo de submissões, que se transfere da mãe a um filho -e que Raúl impõe às mulheres à sua volta.
Nesse circuito de degradações, o espectro da ditadura se mostra numa escala muito mais assombrosa do que os filmes sobre os abusos de poder do período tentam nos levar a conhecer. Pois aqui, em vez de eleger como suas vítimas os nobres heróis, resistentes da luta armada, os efeitos do autoritarismo se reconhecem sob uma lógica muito mais disseminada de indiferença e de alienação que paralisa os personagens.
Em sua insanidade, Raúl tem o peso de figura humana e de metáfora social, ambos embotados e fechados numa idiotia que só enxerga uma solução simplista e absurda para seus problemas: a eliminação.


Avaliação: bom


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