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MÚSICA
Orquestra Popular de Câmara faz apresentação no Sesc Ipiranga que será lançada em disco até o final deste ano
O que nos leva além das meras paixões
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Baião, bolero , congado,
toada, seresta: não necessariamente ao mesmo tempo, mas
quase. E isso não é tudo: tinha
também música de vanguarda,
improvisação livre, sugestões de
música oriental, mais Lennon e
McCartney e Nino Rota. Nada
que cause surpresa, para quem
conhece a Orquestra Popular de
Câmara. Mas foi uma linda surpresa, mesmo assim, a apresentação deles, sexta passada, no Sesc
Ipiranga, onde a Orquestra gravava ao vivo seu segundo disco (selo
Núcleo Contemporâneo).
O instrumental não parece menos esdrúxulo, à primeira vista:
piano, voz, acordeom, bandolim,
flauta, saxofone, violoncelo, contrabaixo, bateria e percussão. Não
é o que diz o nome? "Orquestra"
(grupo grande de instrumentistas), "popular" (com instrumentos da música popular) "de câmara" (maior do que conjunto, menor do que sinfônica). Para ser
preciso, faltaria só acrescentar
"brasileira" -porque a mistura
se dá sempre pelo viés de um pensamento musical daqui- ou "de
São Paulo", porque talvez só numa cidade tão rica de influências
e, hoje em dia, tão generosa nas
respostas, se pudesse compor e
tocar música assim.
Vem regida de dentro, pelo pianista, compositor e arranjador
Benjamin Taubkin. A seu lado, la
Salmaso, que neste contexto é
uma instrumentista de cordas: as
cordas vocais.
Final de "Bayati", cantiga do
Turcomenistão, já gravada no
primeiro disco e revisitada agora:
um "cluster" (notas vizinhas sobrepostas) da voz com os saxofones, os três unidos num corpo só.
Um outro som. Emblema mínimo do que a Orquestra pode ser.
Outros dois exemplos, escolhidos de uma profusão. 1) "Blackbird" (Lennon/McCartney),
transformado em congado, na
inspiração insólita do percussionista Ari Colares. Mas não fica esquisito, com a letra em inglês?
Mônica não canta a letra, só a melodia. Virou ela mesma o grande e
lindo pássaro da música. 2) "O
Circo Invisível de Fellini", do flautista/saxofonista Mané Silveira,
com sua cena falada de caos (aludindo ao "Ensaio de Orquestra"?), depois os ritmos caribenhos de bar de hotel à la "Oito e
Meio", depois seresta e baião, até
chegar em "Amarcord", com direito até ao vento (cortesia do
flautista Teco Cardoso).
Falando nele: que prazer ouvir
Teco tocar. Fez improvisos lindos
no sax soprano e na flauta, e foi
mais ou menos o "spalla" da orquestra, especialmente na sua "Jabaculê no Jabour", animada homenagem a Hermeto Pascoal. A
própria imagem da simpatia, gingando dentro e fora da música.
Uma resenha honesta deveria
falar dos mestres Guello e Caíto
Marcondes, percussionando lá
atrás, com Zezinho Pitoco; do
bandolinista Ronem Altman e do
violoncelista Dimos Gouradoulis,
do contrabaixista Sylvio Mazzuca
Jr. e do acordeonista Lulinha
Alencar. Essa faz o que pode para
não trair o que se ouviu, mas é
curta demais para tanto.
Comentando seu arranjo de
"Correnteza" (Tom Jobim e Luís
Bonfá), Taubkin falou do "mundo bonito" -aquele mundo salvável, a que Orquestra Popular de
Câmara está, desde sempre, votada. Uma espécie de consciência
ecológica da música, combinada
ao humanismo de uma arte sem
alfândega, confere ao trabalho da
Orquestra seu caráter mais cosmopolita e mais forte. Se isso também bloqueia a expressão de outros planos do afeto, se contradições e misérias parecem não existir para eles, isso não deixa de ser
outra bela profissão de fé.
Não é fácil, afinal, definir o registro dessa música. Existe um
afeto sem nome, que os músicos
conhecem bem, e que nos leva para além das meras paixões. Não
tem nome, mas um adjetivo possível para ele é "musical". Foi de
lá, quem sabe, do fundo dessa
emoção quase impessoal, que a
Orquestra encontrou reservas de
sentido. E é para lá, sobrevoando
toda contingência, que a gente vai
agora, que a gente sempre quer ir,
seguindo o pássaro preto da música, correnteza abaixo.
Avaliação:
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