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Crítica/música/musikFabrik
Conjunto de câmara da Alemanha apresenta repertório de vanguarda
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Só o fato de um concerto
de música contemporânea ter lugar no Sesc Vila
Mariana numa noite de sábado
já seria motivo para comemoração. Que os músicos fossem
um prestigiado conjunto alemão, o musikFabrik, especializado no repertório de vanguarda, melhor ainda. Que, na hora
H, a melhor coisa da noite tenha sido a peça de uma compositora de menos de 40 anos, foi
um alento a mais; e quase serviu para diminuir a frustração
de um programa meio morno,
meio à procura de si.
Rebecca Saunders nasceu em
Londres em 1967. Estudou com
Wolfgang Rihm (1952), de
quem o musikFabrik também
tocou um interessante trio para
viola, violoncelo e contrabaixo,
composto há duas décadas, numa linguagem inesperada para
quem associa o compositor ao
neo-romantismo.
O "Duo 3" de Saunders
(2001) combina viola e percussão: bumbos, pratos, sinos, apitos, metalofone; todos tocados,
a maior parte do tempo, com
delicadeza. Inspirada numa citação do teórico renascentista
Leon B. Alberti, a peça explora
"cores" numa espécie de tom
sobre tom da viola com a percussão. O percussionista emprega bastante um arco (na
borda dos pratos, por exemplo)
e a viola se vale de todo um arsenal de técnicas expandidas.
A passagem final, com um
discreto bater descompassado
de sinos, em contraponto com a
frase seca e impessoal da viola,
entrou de imediato na memória. Deu vontade de escutar outras coisas da compositora.
O contrabaixista Michael
Tiepold satisfez logo esse desejo com um solo estrambótico
extraído de "Insideout"
(2003/5), "instalação" de Saunders em parceria com a coreógrafa Sasha Waltz. Da dança-teatro original, ficou o monólogo do contrabaixo, que se desarticula em fragmentos e ruminações.
O concerto incluiu uma seqüência de "haikais" orientalizantes para flauta e violoncelo de Hans Zender (1936), mais
conhecido como regente da
ópera de Hamburgo. E um
"combate" musical de Iannis
Xenakis (1922-2001), para
trompa, trombone, tuba... e árbitro. Foi escrito segundo técnicas estocásticas (procedimentos estatísticos, envolvendo uma variável aleatória) típicas do compositor grego, mas
num contexto cômico atípico,
nem propriamente teatral,
nem realmente cômico.
Aqui, nesse baluarte da vanguarda pós-68, assim como no
"Tratado" do inglês Cornelius
Cardew (1936-81), o repertório
machucava seu próprio nervo
exposto.
Cardew começou como aluno de Stockhausen e chegou a
ser visto, em meados da década
de 60, como "o maior compositor da Inglaterra desde [o polifonista medieval] Dunstable".
O "Tratado", partitura inteiramente gráfica, tocada pelos oito
membros do musikFabrik, pertence a esse período.
Poucos anos depois, Cardew
passaria por uma conversão radical ao maoísmo. Rejeitou seu
antigo mestre no ensaio "Stockhausen Serve ao Imperialismo", montou uma orquestra
mambembe para tocar clássicos e dedicou-se a escrever canções operárias, até morrer precocemente, atropelado.
O gesto final do percussionista, desenrolando sonoramente
uma fita adesiva e prendendo
estantes, cadeiras e até a perna
de um dos músicos, servia de
alegoria involuntária dessa história. Numa improvisação, afinal, sem muito espírito, a música corria o pior dos riscos: sem
chegar a soar velha para a platéia, formada por uma maioria
de jovens alunos de música, ela
soava velha para si mesma, nostálgica de uma utopia -que dizer: de uma juventude- para
sempre sonhada e para sempre
perdida.
MUSIKFABRIK
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