São Paulo, terça-feira, 14 de novembro de 2006

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Crítica/música/musikFabrik

Conjunto de câmara da Alemanha apresenta repertório de vanguarda

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Só o fato de um concerto de música contemporânea ter lugar no Sesc Vila Mariana numa noite de sábado já seria motivo para comemoração. Que os músicos fossem um prestigiado conjunto alemão, o musikFabrik, especializado no repertório de vanguarda, melhor ainda. Que, na hora H, a melhor coisa da noite tenha sido a peça de uma compositora de menos de 40 anos, foi um alento a mais; e quase serviu para diminuir a frustração de um programa meio morno, meio à procura de si.
Rebecca Saunders nasceu em Londres em 1967. Estudou com Wolfgang Rihm (1952), de quem o musikFabrik também tocou um interessante trio para viola, violoncelo e contrabaixo, composto há duas décadas, numa linguagem inesperada para quem associa o compositor ao neo-romantismo.
O "Duo 3" de Saunders (2001) combina viola e percussão: bumbos, pratos, sinos, apitos, metalofone; todos tocados, a maior parte do tempo, com delicadeza. Inspirada numa citação do teórico renascentista Leon B. Alberti, a peça explora "cores" numa espécie de tom sobre tom da viola com a percussão. O percussionista emprega bastante um arco (na borda dos pratos, por exemplo) e a viola se vale de todo um arsenal de técnicas expandidas.
A passagem final, com um discreto bater descompassado de sinos, em contraponto com a frase seca e impessoal da viola, entrou de imediato na memória. Deu vontade de escutar outras coisas da compositora.
O contrabaixista Michael Tiepold satisfez logo esse desejo com um solo estrambótico extraído de "Insideout" (2003/5), "instalação" de Saunders em parceria com a coreógrafa Sasha Waltz. Da dança-teatro original, ficou o monólogo do contrabaixo, que se desarticula em fragmentos e ruminações.
O concerto incluiu uma seqüência de "haikais" orientalizantes para flauta e violoncelo de Hans Zender (1936), mais conhecido como regente da ópera de Hamburgo. E um "combate" musical de Iannis Xenakis (1922-2001), para trompa, trombone, tuba... e árbitro. Foi escrito segundo técnicas estocásticas (procedimentos estatísticos, envolvendo uma variável aleatória) típicas do compositor grego, mas num contexto cômico atípico, nem propriamente teatral, nem realmente cômico.
Aqui, nesse baluarte da vanguarda pós-68, assim como no "Tratado" do inglês Cornelius Cardew (1936-81), o repertório machucava seu próprio nervo exposto.
Cardew começou como aluno de Stockhausen e chegou a ser visto, em meados da década de 60, como "o maior compositor da Inglaterra desde [o polifonista medieval] Dunstable".
O "Tratado", partitura inteiramente gráfica, tocada pelos oito membros do musikFabrik, pertence a esse período. Poucos anos depois, Cardew passaria por uma conversão radical ao maoísmo. Rejeitou seu antigo mestre no ensaio "Stockhausen Serve ao Imperialismo", montou uma orquestra mambembe para tocar clássicos e dedicou-se a escrever canções operárias, até morrer precocemente, atropelado.
O gesto final do percussionista, desenrolando sonoramente uma fita adesiva e prendendo estantes, cadeiras e até a perna de um dos músicos, servia de alegoria involuntária dessa história. Numa improvisação, afinal, sem muito espírito, a música corria o pior dos riscos: sem chegar a soar velha para a platéia, formada por uma maioria de jovens alunos de música, ela soava velha para si mesma, nostálgica de uma utopia -que dizer: de uma juventude- para sempre sonhada e para sempre perdida.


MUSIKFABRIK    

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