São Paulo, quinta-feira, 15 de agosto de 2002

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CINEMA/"O PRÍNCIPE"

Arte da história e do invisível preenche o filme

Divulgação
Os atores Eduardo Tornaghi e Márcia Bernardes em cena do filme "O Príncipe", com direção do cineasta Ugo Giorgetti, que está em cartaz nos cinemas de São Paulo


INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Os filmes de Ugo Giorgetti visam habitualmente um país em transformação permanente e frenética, o Brasil, e impõem uma sutil, embora intransponível distância, entre o que se vê e o que não se vê.
Essa distância existe em "Sábado", história de um velho palacete transformado em pardieiro pela deterioração do centro de São Paulo. Ou em "Festa", onde três artistas conversam à espera do momento de se apresentar numa festa que nunca veremos.
Isto é: seja pela ação do tempo, seja pela do espaço, o que conta nos filmes de Ugo Giorgetti é menos o que está em cena do que a distância sutil entre o que se vê e o que não se vê.
Este é também o princípio de "O Príncipe", em que um homem (Eduardo Tornaghi) volta ao Brasil após mais de 20 anos na Europa. Já na chegada, ao entrar na Vila Madalena, pergunta ao chofer do táxi se não errou de rua.
Esta é a primeira e mais superficial das mudanças de que trata o filme. A transformação "O Príncipe" diz respeito antes de tudo às pessoas. E pessoas não existem sem seus lugares. Não será por acaso que um velho jornalista (Otávio Augusto) se postará aos berros (melancólicos), diante das ruínas do antigo Paribar, na praça Dom José Gaspar, atrás da Biblioteca Municipal, ela também reduzida à ruína de uma cidade que perdeu seu centro.
O que o filme de Giorgetti nos transmite nessa cena não é a sensação aparente de mudança, mas a de distância entre a juventude de um homem e sua maturidade, entre os sonhos que partilhou com uma geração e a corrosão que o tempo lhes impôs.
Os demais encontros criam a percepção de que o tempo impõe uma espécie de dolorosa decalagem: como se o protagonista tivesse se tornado a foto não descolorida (longe disso), mas desfocada de si mesmo.
Essa decalagem é desdobrada no filme pelo efeito espacial. Viver fora por longo tempo, sabemos, implica, ao retornar, um inevitável estranhamento. E não é o menor dos méritos de "O Príncipe" fazer com que olhemos coisas que nos são familiares (teatro Alfa, Bom Retiro etc.) com os olhos do protagonista: como se nos fossem ligeiramente estranhas.
É a possibilidade de partilhar com o protagonista esse hiato que ele experimenta intensamente que fazem de "O Príncipe" um filme da história. Pois o que é a história senão a constatação desse hiato, o reconhecimento da impossibilidade de apreender inteiramente um fato, um momento, uma época, uma pessoa e, simultaneamente, o esforço de apreender tudo isso?
No caso, trata-se de indagar o que nós fomos, no que nos tornamos, o que aconteceu conosco, com o Brasil, com São Paulo.
Existe uma segunda e não menos relevante trama no filme: a de um professor de história que enlouquece e passa a pregar a formulação de uma história imaginária. Passemos por ela, que mereceria artigo à parte. O essencial, no caso, é que esse personagem introduz uma outra idéia no filme: a de que a própria realidade contém um núcleo de irrealidade que nos arrasta.
Ela é sintomática da sutileza a que chegou o pensamento desse cineasta, do qual é impossível dissociar seu parti-pris formal, em que o despojamento nos coloca com mais clareza diante desses pequenos, porém vertiginosos abismos do dia-a-dia.


O Príncipe     
Produção: Brasil, 2002
Direção: Ugo Giorgetti
Com: Eduardo Tornaghi, Bruna Lombardi e Ricardo Blat




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