São Paulo, sábado, 17 de março de 2007

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Crítica/teatro/"Os Crimes do Preto Amaral"

Montagem expõe o racismo implícito do povo brasileiro

Peça de Paulo Faria parte de fato real de 1927, quando um homem negro foi condenado sem provas por assassinato

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Tendo estreado discretamente no ano passado, "Os Crimes do Preto Amaral" vem ganhando uma pertinência cada vez maior diante dos últimos noticiários.
Na trama, um cadáver de criança é descoberto; logo, José Augusto do Amaral, negro, é apresentado como o assassino.
Alimentando o terror e o deleite da população, a mídia multiplica detalhes escabrosos, enquanto intelectuais abandonam qualquer ética para se apresentarem como porta-vozes da vingança sangrenta contra o perturbador da boa consciência branca. Não importa que vítimas continuem aparecendo depois da sua prisão: Amaral encarna o mal a ser eliminado. Por trás de toda exortação pela pena de morte, há sempre o cheiro nauseabundo da eugenia.
O grande mérito da companhia Pessoal do Faroeste, nessa sua sétima montagem, é o de partir de fatos reais de 1927 para extrair deles uma essência quase arquetípica, em uma síntese de teatro-denúncia e teatro experimental.
O diretor e dramaturgo Paulo Faria partiu da tese de doutorado de Paulo Fernandes de Sousa Campos, que expõe a condenação sem provas de José Augusto do Amaral, ainda apontado como o "primeiro "serial killer" brasileiro".

Eugenia
Na peça, o doutor Apolo fala abertamente o que hoje se tem vergonha de assumir, mas por isso mesmo passa como um bom senso implícito: por ser negro, Amaral teria tendências naturais para o assassinato.
Ao encarnar o personagem, Enio Gonçalves defende essas teorias eugênicas sem cair nunca em uma caricatura fácil, se arriscando corajosamente a provocar um endosso em parte da platéia.
Em contraponto, sua filha Eurídice, uma advogada (licença poética para um fato impossível na época) defende a inocência de Amaral, representado com uma dignidade inesquecível por Adão Filho, que em 25 anos de carreira merece ser consagrado neste papel.
No processo de montagem, contatos com a população carcerária e oficinas com a comunidade em geral garantiram, como é costume na companhia, um pé fincado solidamente no social.
No entanto, a trama se prende mais nos dilemas de consciência da elite branca. Como nas lâmpadas multiplicadas no cenário que produziriam uma luz insuportável se acesas por mais de um segundo. Em vez da denúncia aberta, Faria preferiu optar pela alegoria do mito de Orfeu, presente no nome dos personagens e nas alusões da trilha ao "Orfeu do Carnaval".
Assim, uma narrativa fragmentada parece situar a ação na mente do jornalista sensacionalista Himeneu. O cenário caleidoscópico estabelece, como no "Vestido de Noiva", de Ziembinski, planos de memória, devaneio e realidade; atores saltam de um personagem para outro, multiplicando sotaques e posturas.
O virtuosismo assim exigido às vezes chega à afetação: não seriam precisos tantos recursos para o importante recado da companhia.
Mas, o que importa mesmo é que a Sede Luz do Faroeste, quase escondida em um modesto bairro do centro, traz luz a um túnel que parece não ter fim: o racismo institucional brasileiro.


OS CRIMES DO PRETO AMARAL    
Dramaturgia e direção: Paulo Faria
Com: Cia. Pessoal do Faroeste
Quando: sex. e sáb., às 20h30; dom., às 18h; até 24/6
Onde: Sede Luz do Faroeste (al. Cleveland, 677, Campos Elíseos, tel. 3362-8883)
Quanto: R$ 20 (sex.) e R$ 30 (sáb. e dom)


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