|
Texto Anterior | Índice
Crítica/teatro/"Os Crimes do Preto Amaral"
Montagem expõe o racismo implícito do povo brasileiro
Peça de Paulo Faria parte de fato real de 1927, quando um homem negro foi condenado sem provas por assassinato
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Tendo estreado discretamente no ano passado,
"Os Crimes do Preto
Amaral" vem ganhando uma
pertinência cada vez maior
diante dos últimos noticiários.
Na trama, um cadáver de
criança é descoberto; logo, José
Augusto do Amaral, negro, é
apresentado como o assassino.
Alimentando o terror e o deleite da população, a mídia multiplica detalhes escabrosos, enquanto intelectuais abandonam qualquer ética para se
apresentarem como porta-vozes da vingança sangrenta contra o perturbador da boa consciência branca. Não importa
que vítimas continuem aparecendo depois da sua prisão:
Amaral encarna o mal a ser eliminado. Por trás de toda exortação pela pena de morte, há
sempre o cheiro nauseabundo
da eugenia.
O grande mérito da companhia Pessoal do Faroeste, nessa
sua sétima montagem, é o de
partir de fatos reais de 1927 para extrair deles uma essência
quase arquetípica, em uma síntese de teatro-denúncia e teatro experimental.
O diretor e dramaturgo Paulo
Faria partiu da tese de doutorado de Paulo Fernandes de Sousa Campos, que expõe a condenação sem provas de José Augusto do Amaral, ainda apontado como o "primeiro "serial killer" brasileiro".
Eugenia
Na peça, o doutor Apolo fala
abertamente o que hoje se tem
vergonha de assumir, mas por
isso mesmo passa como um
bom senso implícito: por ser
negro, Amaral teria tendências
naturais para o assassinato.
Ao encarnar o personagem,
Enio Gonçalves defende essas
teorias eugênicas sem cair nunca em uma caricatura fácil, se
arriscando corajosamente a
provocar um endosso em parte
da platéia.
Em contraponto, sua filha
Eurídice, uma advogada (licença poética para um fato impossível na época) defende a inocência de Amaral, representado com uma dignidade inesquecível por Adão Filho, que
em 25 anos de carreira merece
ser consagrado neste papel.
No processo de montagem,
contatos com a população carcerária e oficinas com a comunidade em geral garantiram,
como é costume na companhia,
um pé fincado solidamente no
social.
No entanto, a trama se prende mais nos dilemas de consciência da elite branca. Como
nas lâmpadas multiplicadas no
cenário que produziriam uma
luz insuportável se acesas por
mais de um segundo. Em vez da
denúncia aberta, Faria preferiu
optar pela alegoria do mito de
Orfeu, presente no nome dos
personagens e nas alusões da
trilha ao "Orfeu do Carnaval".
Assim, uma narrativa fragmentada parece situar a ação
na mente do jornalista sensacionalista Himeneu.
O cenário caleidoscópico estabelece, como no "Vestido de
Noiva", de Ziembinski, planos
de memória, devaneio e realidade; atores saltam de um personagem para outro, multiplicando sotaques e posturas.
O virtuosismo assim exigido
às vezes chega à afetação: não
seriam precisos tantos recursos para o importante recado
da companhia.
Mas, o que importa mesmo é
que a Sede Luz do Faroeste,
quase escondida em um modesto bairro do centro, traz luz
a um túnel que parece não ter
fim: o racismo institucional
brasileiro.
OS CRIMES DO PRETO AMARAL
Dramaturgia e direção: Paulo Faria
Com: Cia. Pessoal do Faroeste
Quando: sex. e sáb., às 20h30; dom., às 18h; até 24/6
Onde: Sede Luz do Faroeste (al. Cleveland, 677, Campos Elíseos, tel.
3362-8883)
Quanto: R$ 20 (sex.) e R$ 30 (sáb. e dom)
Texto Anterior: Isaac Asimov inspira ficção científica em cima do palco Índice
|