São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 1998.



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CINEMA EM CARTAZ
Titanic navega por todas as formas de mídia

NINA HORTA
especial para a Folha

Depois que afundou de verdade em 1912, o navio Titanic vem navegando por todas as mídias, por dezenas de filmes e de livros. Ressuscitou a partir dos anos 50, com um filme de Hollywood, e, em 1955, com um livro que se fez um best seller. Tornou-se, então, um fenômeno comercial para ninguém botar defeito. Voltou com tudo a partir de 1985, ao ser redescoberto no fundo do mar.
Em cada uma dessas visitas, aparece transformado, revisto por estéticas e ideologias da época, espelhando um mundo novo. Agora, apresenta-se para nossa análise e mais para nosso entretenimento em documentários, CD-ROMs, Internet, um musical na Broadway, videogames, um livro de cozinha, um filme caríssimo.
Algumas dessas manifestações, artísticas ou não, relacionadas ao assunto, afundam velozmente, outras conseguem manter a cabeça fora d'água.
Ultimamente, quem fez água e não deixou traço foi o livro de cozinha "Last Dinner on the Titanic" (Último Jantar no Titanic), com a derradeira refeição de canapés, ostras à la Russe, pato ao Calvados e éclairs de chocolate.
O musical "Titanic", na Broadway, foi anunciado com cartazes da proa iluminada de um navio e os dizeres: "Em 1912, deixou a Inglaterra em direção a Nova York e à história. Chega na primavera".
A crítica caiu de pau antes da estréia. Uma viagem que mata 1.500 pessoas é uma pobre desculpa para se cantar e dançar. Só muito talento para conseguir que um tema assim desse samba, mas formaram-se filas nas bilheterias.
Acontece que o Titanic é um navio ou um desastre com muito carisma. Ninguém se lembra do Andrea Doria ou de grandes catástrofes de avião pelo nome. O Titanic afundou só uma vez, mas continua a fazer onda por onde quer que vá, com audiência certa, uma metáfora sempre adequada ou uma boa história triste.
O livro "A Night to Remember" (Uma Noite para se Lembrar), de Walter Lord (1955), a bíblia do desastre, nunca parou de ser editado e ele comenta: "Para os historiadores, é o espelho do começo deste século. Para os aficionados náuticos, é o maior desastre já ocorrido. Para estudantes da natureza humana, é um laboratório quase sempre fascinante. Para os nostálgicos, é a atração do passado. E é também tudo aquilo que poderia ter sido".
Em 1996, o escritor Steven Biel analisou o microcosmos do Titanic com os vários significados culturais da catástrofe, em "Down With the Old Canoe". A época romântica eduardiana teria projetado no navio todos os conflitos da época. A certeza de que a ciência estaria resolvendo os conflitos da humanidade, as lutas de classes (dos porões e casas das máquinas escaldantes como o inferno, ao luxo da primeira classe), a questão dos imigrantes, os direitos da mulher, o consumismo explícito, tudo cabe no universo do Titanic.
Na Internet, o navio corta as águas em sites da universidade de Liverpool, sites das exposições dos destroços, listas de passageiros, em associações de preservação de sítios marítimos e mais e mais.
E agora, o novo filme, que estreou na sexta.
Li uma crítica de Anthony Lane sobre o filme. Resenha boa, suculenta, daquelas que quase dispensam que se assista o filme, e me interessei. O crítico de cinema da revista "New Yorker" acha que o diretor James Cameron fez um trabalho realmente muito bom. Uma história de Romeu e Julieta com um fundo perfeito e estupendo. "No final do século, Cameron está empurrando o cinema, tal como Griffith fez no começo, apostando no espetacular, ultrapassando o intelecto e mirando o umbigo, as vísceras do espectador."
Filmes antes do filme
Tentei me localizar no tempo e no espaço, num fim-de-semana, preparando-me para assistir o "Titanic" da nossa década. Na locadora 2001, achei o filme clássico do desastre, "Somente Deus por Testemunha" ("A Night to Remember", Roy Baker, 1958). Estava catalogado como aventura. "Some adventure", com diriam os americanos. É bom. É a versão filmada da bíblia dos aficionados: "A Night To Remember", de Walter Lord, que cobriu quase todos os ângulos da tragédia. Eles têm também o hollywoodiano "SOS Titanic", com Barbara Stanwick, mas não estava disponível.
Na Hobby Video aluguei o interessante documentário "Os Segredos do Titanic", de 1986, e mais o que havia de filmes de James Cameron: "O Exterminador do Futuro" (1985). Bom. "Aliens, o Resgate" (1986). Chato. "O Segredo do Abismo" (1989). Cruzes! "True Lies" (94). Quase ótimo, não fossem os excessos do diretor.
Vendo os filmes de Cameron, percebi na hora que o diretor já nasceu com o roteiro de "Titanic" tatuado no cérebro. Seus filmes, principalmente "Segredo do Abismo", são como exercício prévio para filmar o Titanic que morava nos seus ossos. Um pega prá capar, granadas caindo no seu colo, jamantas te achatando na parede, explosões, horrores que só aumentam, ação vigorosa repetida à exaustão, o beco sem saída assaltando em cada fim de corredor, uau! O que teria ele para inventar em "Titanic"? Nada. O script estava pronto havia quase um século.
Fui buscar paz no documentário, feito pela National Geographic, da descoberta do Titanic no fundo do mar. Robert Ballard, conhecido como o Indiana Jones das profundezas, foi quem teimosamente descobriu os destroços do navio naufragado. Em 1985, botou Jason, um robô com jeito de cachorro, portador de um televisivo olho ciclópico, a se esgueirar pelas ruínas enferrujadas do navio.
É claro que James Cameron, como todo mundo, viu o documentário que lhe tocou o nervo exposto. Posso quase apostar que a imagem que precipitou sua necessidade de filmar a história do Titanic foi a do enorme lustre de cristal dependurado no teto do mar. Dependurado mesmo, os peixes passando entre os pingentes transparentes e já uns corais e algas se juntando ao desenho primitivo, mas sem perturbá-lo.
Uma xícara intacta escorregou por superfícies sacudidas pelo desastre e parou, pousada. Ficou lá, naquele imenso silêncio, desde 1912, esperando a hora do chá. Emocionante.
Cada vez que descobrem tesouros marítimos, descubro nas minhas próprias profundezas uma voracidade sem limites. Quero ter para mim aquelas moedas, aquela louça da China, e como cobiço as jóias, as pequenas estatuetas, pelas quais passaria batida, se estivessem em uma vitrine qualquer.
Objetos e pirataria
O problema não é só meu, feliz ou infelizmente. Robert Ballard, que iluminou profundidades que o sol jamais viu, sabe disso e sofre. Queixa-se mais ou menos assim nas suas inúmeras entrevistas, galã do fundo dos mares que é: "Olhem só o que aconteceu. Descobrimos o Titanic e logo atrás vieram os saqueadores. Eu me sinto responsável por ter aberto o Titanic a piratas mercenários. Nosso objetivo não era reaver os objetos, o que é desnecessário. Qual a pressa de trazê-los à tona? Seria preciso primeiro datar, analisar historicamente, e o ideal é que a pesquisa seja 'in situ'".
Eram indiretas de Ballard contra a New York Salvage Company, que financiou o resgate de cerca de 4.000 objetos, estimulando essa produção recente de filmes, livros, documentários e exposições pelos quatro cantos do mundo. Moedas, louças, roupas, um anjo de bronze, papéis da Bolsa, baralhos, cartas de amor, um vidro de azeitonas e muito mais.
As associações de resgate têm as costas quentíssimas com patrocinadores de grande peso. Querem mostrar as melhores peças ao público e só depois deixá-las na mão dos estudiosos.
É um debate interessante, pois o comportamento diante das ruínas do carismático Titanic será o modelo para comportamentos futuros diante de nossas heranças culturais submarinas.

Filme: Titanic Produção: EUA, 1997 Direção: James Cameron Com: Leonardo DiCaprio e Kate Winslet Onde: Olido 3, Estação Lumiere 2 e circuito


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