São Paulo, terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

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Teatro/Crítica

Didatismo tolhe a tensão dramática de "Cartas ao Futuro"

Divulgação
O ator Hellder Mariani em cena da montagem "Cartas ao Futuro", em cartaz na Casa das Rosas


SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Luís André do Prado é um pesquisador imprescindível. Depois de ter sintetizado a história do teatro brasileiro com "Cacilda Becker, Fúria Santa", interessou-se por Raul Pompéia, que já tinha merecido uma biografia de Camil Capaz. Pompéia, muito mais que o autor de um romance só, "O Ateneu", em ambas pesquisas surge como um polemista intransigente, que denuncia a hipocrisia de sua época sem a prudência de Machado de Assis de se infiltrar na elite.
Assinando às vezes "um moço do povo", abolicionista e republicano, aderiu ao militarismo de Floriano Peixoto contrariando seus amigos intelectuais, já incomodados com o homossexualismo descrito sem disfarces em seu romance. Ao invés de combater seus argumentos, Olavo Bilac o ridiculariza em suposições infames e pessoais, que infalivelmente depõem contra quem as profere: em seu panfleto abjeto, Pompéia "se masturba e gosta de, altas horas da noite, numa cama fresca, à meia-luz de veilleuse mortiça, recordar, amoroso e sensual, todas as beldades que viu durante o seu dia".
Tal agressão rendeu um patético duelo sem derramamento de sangue - e daí Bilac segue para a glória e Pompéia para a depressão e suicídio, não sem antes rever publicamente sua admiração pelo Marechal Floriano, no pior momento: discursando em seu enterro.
E é assim, mais kamikase que suicida, que Pompéia ressurge na Casa das Rosas, num monólogo baseado nas pesquisas de Prado. O lugar não poderia ser mais indicado. Preservando não só patrimônio público mas todos os valores culturais do século 19, cada quarto da casa abriga um projeto desafiador.
O que não quer dizer, infelizmente, que "Cartas ao Futuro" seja um espetáculo bem-sucedido. Falta cancha teatral ao texto de Prado, e o didatismo de biografia, por mais instigante que seja, acaba tolhendo a tensão dramática. Helder Mariani, embora pouco conhecido e um pouco inseguro em cena, não é um ator iniciante, e soube se cercar com uma boa equipe, como o diretor Eduardo Coutinho. Segue, assim, com paixão uma minuciosa partitura de entonações e gestos, mas lhe faltam sutileza e precisão.
Nos últimos momentos da vida, redigindo uma nota de suicídio como uma "carta ao futuro", Pompéia relembra momentos difíceis e textos polêmicos encarnando cada personagem referido, com um escárnio de caricatura. Nesse labirinto, com excesso de energia, Mariani em geral é ilustrativo: evoca tristemente pessoas tristes e perversamente os perversos, na inflamação retórica do discurso. A caricatura e o discurso sem dúvida são algumas das facetas mais brilhantes do biografado, mas uma contenção maior na interpretação e um menor didatismo no espetáculo iriam servir melhor essa causa apaixonante que é a reabilitação de Raul Pompéia.

CARTAS AO FUTURO   
Com:
Hellder Mariani
Direção: Eduardo Coutinho
Onde: Casa das Rosas (av. Paulista, 37, Paraíso, tel. 3285-6986)
Quando: sábados, às 21h; domingos, às 20h (até 4 de março)
Quanto: R$ 10 (R$ 5 a meia-entrada)


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