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São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 2003

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ERUDITO

Maestro Ira Levin rege estréia brasileira da ópera "Jenufa", dirigida por Naum Alves de Souza, no Teatro Municipal

Erotomanias de Janacek: céu e inferno do amor

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Difícil de acreditar, mas é a primeira montagem brasileira de "Jenufa". Aos 99 anos de idade, a ópera de Leos Janacek (1854-1928) não dá sinal de cansaço: estupenda música, descomunais paixões, uma inteligência humana inteiramente dentro da vida. Dentro do teatro, a gente fica pequeno, escutando o grandioso elenco de cantores, soprano polonesa Therese Waldner à frente.
Janacek (pronuncia-se "Iá-na-tchek") teve uma das carreiras mais incomuns da história da música. Até os 50 anos, era desconhecido; professor de música numa cidadezinha da Morávia. O sucesso de "Jenufa", primeiro em Praga, depois (traduzida para o alemão por Max Brod, o amigo e editor de Kafka) no resto da Europa, mudou tudo.
A isso soma-se o encontro, em 1916, com uma mulher 38 anos mais jovem (e casada), por quem o sexagenário compositor (também casado) nutriria um amor forte o bastante para estimular uma sucessão de obras-primas: as óperas "Katya Kabanova" e "O Caso Macropoulos", os dois quartetos de cordas, as peças para piano e o ciclo de canções "Diário de um Desaparecido", entre outras. Como se toda a pressão amorosa e erótica estocada encontrasse afinal um objeto à altura, convenientemente inacessível.
Sabendo disso, tudo muda retrospectivamente em "Jenufa"; e a direção de Naum Alves de Souza tem o mérito de preservar a ambientação quase folclórica e quase simplória do libreto original, baseado numa peça de Gabriela Preissova. Mesmo a encenação, que às vezes tende para o televisivo, em especial nas cenas do coro, ganha um ar "antigo" que agora, curiosamente, duplica o antigo da peça. É o "realismo" entre aspas, que a música explode de dentro, como os amores e horrores explodem o texto também.
Nesses tempos de bonança vocal, fica até repetitivo dizer que o elenco está homogeneamente bem. Só não se pode deixar de dar destaque para a voz intensa e sensual de Therese Waldner. Tem sempre um pé na terra e outro no inferno; equilibra a franqueza direta com o entendimento velado. Sua opção final pelo homem que lhe desfigurou o rosto -o tenor americano Jeffrey Dowd, voz de cobre- ganha com isso ares de verdade: alegre e triste.
Mas o negócio de Janacek é mesmo a erotomania. E ninguém encarna isso melhor do que a Madrasta, cantada aqui pela soprano americana Nina Warren. Enrustida, toda de preto (no ótimo figurino de época, de Miko Hashimoto), cabe a ela praticar o infanticídio na história. Só a susansontaguiana mecha sugeriria esse fogo, esse gelo. Só isso -e a voz.
Prata da casa: Regina Elena Mesquita (Avó), Sebastião Teixeira (Capataz) e Sérgio Weintraub (Steva). Mais Carlos Eduardo Marcos e Maria Lucia Waldow, entre outros. Todos cantando em tcheco -o que é fundamental, porque Janacek explora aqui, pela primeira vez, a "melodia da fala", uma apropriação musical da prosa espontânea da língua, que o compositor anotava com afinco de ornitólogo.
Talvez não pareça, mas a música é bem difícil para a orquestra. Um pouco demais, talvez, para a Sinfônica Municipal, que levou a coisa com raça, sob a regência energética de Ira Levin. O maestro está mantendo seu projeto de fazer a orquestra tocar um repertório acima do que poderia com conforto. A aposta é em resultados a médio prazo. Vale a aposta; e uma montagem como essa, no contexto, é um arrojo.


Jenufa   
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nš, região central de São Paulo, tel. 222-8698)
Quando: hoje e sábado, às 20h30
Quanto: de R$ 15 a R$ 100



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