São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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"A HORA EM QUE NÃO SABÍAMOS NADA UNS DOS OUTROS"

Público é convidado a compor ele mesmo seu trajeto de sentido

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Pátio interno de um casarão imponente. Na frente, à esquerda, uma árvore frondosa indica, junto a caminhos por entre canteiros de flores, que estamos em um passeio público. O vento agita as folhas, oferecendo oráculos para quem souber ouvir. Um homem nu atravessa o pátio.
Assim começa "A Hora em que Não Sabíamos Nada uns dos Outros", de Peter Handke. Despertado em sua imprevisibilidade, o pacato espaço-tempo do pátio do Instituto Goethe vai enlouquecer. Quase 20 atores, fazendo cada um quase 20 personagens, sem nenhum diálogo, vão organizar um desfile de cenas urbanas, em que mendigos, carteiros, escoteiros, policiais cruzam com Moisés, Carlitos, o Papagueno da ópera de Mozart, e até, em metalinguagem, o diretor, a figurinista e operadores de luz e som.
Nesse caleidoscópio sem órbita, o público é convidado a compor ele mesmo o seu trajeto de sentido, como quem faz um buquê. Algumas cenas são em tempo real: uma cega se perdeu, quem virá buscá-la? Outras exigem uma cinematográfica quebra da unidade de tempo: acompanhamos a trajetória de um casal improvável, do primeiro encontro fortuito ao nascimento do filho. O jogo, poético e hilário, aviva o prazer intrínseco ao teatro -buscar um senso para a vida, como quem busca o Wally.
O fato de que cada ator tem poucos segundos para trocar de personagem e figurino, responsabilizando-se cada um por uma produção equivalente à de uma peça inteira, prova o quanto a Cia. Elevador de Teatro Panorâmico é sólida e organizada. Não há tempo para estrelismos, nem para grandes teorias de interpretação.
Está lá Gabriel Miziara, que há pouco se destacou no monólogo "Loucura", quando a Elevador foi todos por um; agora, são todos por todos que, nos minuciosos e diminutos solos, alternam "insights" líricos com caricaturas histriônicas, sem perder a verossimilhança, sem se desconcentrar da dor e delícia de ser o que é.
Maitê Chasseraux, a figurinista concorrente ao "Guiness" pelo que foi exigida em criatividade, circula com a mesma capacidade por todos os gêneros, da reconstituição naturalista à fantasia luxuosa, do uniforme ao abstrato. A trilha de Fernando Mastrocolla resolve genialmente, só com o solo de violão e ruídos, todos os climas e ritmos, em uma criação conjunta com o elenco e a direção.
Marcelo Lazzaratto é o líder tranquilo no centro desse caos. Usou o desafio para desenvolver uma técnica de interpretação, sua dissertação de mestrado, que convida cada ator a compartilhar a criação do espetáculo. A peça, assim, serve de mostruário para o imenso potencial de seu grupo.
Tampouco mímica, como os filmes de Jacques Tati, tampouco dança, como os espetáculos de Pina Bausch, "A Hora em que..." não é uma revolução do teatro: entusiasma pela simplicidade. Seu despojamento e sua vocação para a intervenção urbana fazem com que se imagine facilmente o espetáculo abrindo festivais. Dialogaria deliciosamente com Curitiba, com São José do Rio Preto, assim como -por que não- com Edimburgo e Avignon.

A Hora em que Não Sabíamos Nada uns dos Outros



    
Texto: Peter Handke
Direção: Marcelo Lazzaratto
Onde: Instituto Goethe (r. Lisboa, 974, tel. 3088-4288)
Quando: sex., às 22h; sáb., às 21h; e dom., às 19h; até 1º/12
Quanto: R$ 10



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