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ANÁLISE
Temos motivos para comemorar?
GUILHERME WISNIK
CRÍTICO DA FOLHA
São Paulo faz 449 anos. Mas
parece sempre que situações
como esta, que promovem a sua
celebração simbólica, não se encaixam bem em sua índole pragmática e antinarcísica. Isto é: São
Paulo é uma cidade que não fixa
uma identidade, com uma cultura
e uma paisagem muito pouco exibicionistas, e seus cidadãos já naturalizaram, em relação a ela, uma
prática de recíproco mau trato.
A poluição do seu principal rio,
o Tietê, a demolição de sua Igreja
Matriz, a primeira Sé, ou a canalização de seu mais importante
"monumento" histórico, o córrego do Ipiranga, são manifestações
desse desapego. Sua origem histórica explica em parte tais desacertos: situada na cabeceira de uma
colina cercada por vales lamacentos, a aldeia jesuítica ocupava um
lugar estratégico na conquista de
territórios interiores, mas impróprio para o assentamento urbano.
Porém esse não é um pecado de
origem que chegue a explicar os
males da cidade de hoje. São Paulo fez, ao longo do tempo, continuadas opções no sentido de promover o seu desastre. Exemplos
disso são a ênfase no modelo rodoviário (de automóvel particular) e a adoção da franca especulação imobiliária, que periferiza e
degrada o seu tecido urbano, e
produz a dita "cidade ilegal" (induzindo ou obrigando populações removidas de outras áreas da
cidade a morar em regiões afastadas, proibidas, ou de risco, como
a de mananciais). Nesse quadro,
títulos como os de primeira cidade do mundo em frota de helicópteros e carros blindados são símbolos de um violento apartheid
social, que é urbano.
Não há, portanto, nada a comemorar? Aparentemente não, pelo
menos de um modo fácil ou direto. Mas há, certamente, um sugestivo convite à reflexão. Cinco mil
anos após o surgimento das primeiras cidades na Mesopotâmia,
vivemos o momento histórico em
que o mundo se tornou mais urbano do que rural. E a existência
de São Paulo expõe, de maneira
dramática, essa questão como um
desafio.
A cidade, hoje abundante em
serviços, foi impulsionada pela
associação entre café e indústria e
formada por uma imigração particularmente variada e rica. É
constituída, desse modo, pelas
pressões democratizantes inerentes ao processo de metropolização, por um cosmopolitismo que
se opõe às formas paroquiais e segregadas de convívio. Por isso podemos perguntar: é possível pensar hoje numa cultura urbana em
São Paulo que seja vista como forma de emancipação, e não como
produtora de desigualdade social?
Vivemos um momento favorável, com a promessa de uma reforma agrária, que deverá controlar, de certo modo, o êxodo rural,
e com a criação de um Ministério
das Cidades, que deverá focar
suas questões específicas em âmbito federal. E São Paulo é certamente o epicentro desse redirecionamento de perspectivas,
combinando uma capacidade de
mobilização social à existência de
uma cultura de vanguarda própria que permite dizer: sim, temos
motivos pra comemorar.
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