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São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 2003

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ANÁLISE

Temos motivos para comemorar?

GUILHERME WISNIK
CRÍTICO DA FOLHA

São Paulo faz 449 anos. Mas parece sempre que situações como esta, que promovem a sua celebração simbólica, não se encaixam bem em sua índole pragmática e antinarcísica. Isto é: São Paulo é uma cidade que não fixa uma identidade, com uma cultura e uma paisagem muito pouco exibicionistas, e seus cidadãos já naturalizaram, em relação a ela, uma prática de recíproco mau trato.
A poluição do seu principal rio, o Tietê, a demolição de sua Igreja Matriz, a primeira Sé, ou a canalização de seu mais importante "monumento" histórico, o córrego do Ipiranga, são manifestações desse desapego. Sua origem histórica explica em parte tais desacertos: situada na cabeceira de uma colina cercada por vales lamacentos, a aldeia jesuítica ocupava um lugar estratégico na conquista de territórios interiores, mas impróprio para o assentamento urbano.
Porém esse não é um pecado de origem que chegue a explicar os males da cidade de hoje. São Paulo fez, ao longo do tempo, continuadas opções no sentido de promover o seu desastre. Exemplos disso são a ênfase no modelo rodoviário (de automóvel particular) e a adoção da franca especulação imobiliária, que periferiza e degrada o seu tecido urbano, e produz a dita "cidade ilegal" (induzindo ou obrigando populações removidas de outras áreas da cidade a morar em regiões afastadas, proibidas, ou de risco, como a de mananciais). Nesse quadro, títulos como os de primeira cidade do mundo em frota de helicópteros e carros blindados são símbolos de um violento apartheid social, que é urbano.
Não há, portanto, nada a comemorar? Aparentemente não, pelo menos de um modo fácil ou direto. Mas há, certamente, um sugestivo convite à reflexão. Cinco mil anos após o surgimento das primeiras cidades na Mesopotâmia, vivemos o momento histórico em que o mundo se tornou mais urbano do que rural. E a existência de São Paulo expõe, de maneira dramática, essa questão como um desafio.
A cidade, hoje abundante em serviços, foi impulsionada pela associação entre café e indústria e formada por uma imigração particularmente variada e rica. É constituída, desse modo, pelas pressões democratizantes inerentes ao processo de metropolização, por um cosmopolitismo que se opõe às formas paroquiais e segregadas de convívio. Por isso podemos perguntar: é possível pensar hoje numa cultura urbana em São Paulo que seja vista como forma de emancipação, e não como produtora de desigualdade social?
Vivemos um momento favorável, com a promessa de uma reforma agrária, que deverá controlar, de certo modo, o êxodo rural, e com a criação de um Ministério das Cidades, que deverá focar suas questões específicas em âmbito federal. E São Paulo é certamente o epicentro desse redirecionamento de perspectivas, combinando uma capacidade de mobilização social à existência de uma cultura de vanguarda própria que permite dizer: sim, temos motivos pra comemorar.

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