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São Paulo, terça-feira, 25 de fevereiro de 2003

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CINEMA

Ciclo organizado pela Sala Cinemateca, em SP, que vai de hoje a 9 de março, enfoca a cinematografia do país

"Irã das crianças" reeducou o olhar ocidental

Divulgação
Cena da produção iraniana "Gosto de Cereja", do diretor Abbas Kiarostami, que está presente dentro do ciclo da Sala Cinemateca


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Tudo começou no departamento de produção de filmes pedagógicos do Instituto de Desenvolvimento Intelectual das Crianças e Adolescentes. Trabalhar com crianças não era algo apenas edificante para os cineastas do Irã pós-revolução islâmica, era também a melhor maneira de driblar a censura.
Com o tempo, o novo cinema iraniano, tema da retrospectiva que se inicia na Cinemateca, fez da criança uma espécie de protagonista ideal. Elas eram, em sua hiperperceptibilidade natural, as legítimas portadoras da nova percepção de mundo que nascia. Era toda uma nova pedagogia da percepção que surgia e na qual nós, ocidentais, pudemos reeducar nosso olhar cansado de guerra.
Os filmes iranianos funcionaram como uma espécie de "clin d'oeil", limpando nosso olhar de suas acumuladas impurezas formais e (mesmo) humanas. Não foi apenas a espantosa simplicidade temática e formal daqueles filmes que nos desconcertou. Neles havia uma pureza que tínhamos perdido, uma verdadeira inocência que nos era restituída.
O humanismo que se saudou no cinema iraniano não era senão seu "espírito da infância", a capacidade de ver e fazer ver os aspectos mais belos e afetuosos da alma humana, aspectos que o cinema ocidental parece ter perdido.
Esse humanismo-velho-estilo e uma estética que reposicionava a ficção cinematográfica na fronteira com o documentarismo também levaram a crítica ocidental a celebrar, nos filmes iranianos, a tábua de salvação de um certo ideal de cinema, muito baziniano e um tanto obliterado: o ideal de um realismo integral, de máxima continuidade espacial e temporal.
Os iranianos retomaram a tradição realista do cinema moderno do pós-Segunda Guerra. E a retomaram por inteiro quando, ao cinema perceptivo da primeira fase, tributário, a começar dos curtas de Kiarostami, do neo-realismo dos anos 40/50, acresceram, a partir do clássico "Close-Up", táticas antiilusionistas caras aos cinemas novos dos anos 60/70.
Tudo porque o cinema invadira a realidade do povo iraniano e dela já não podia ser dissociada. Os cineastas haviam dado um passo em direção ao povo e o povo começa a dar o seu passo em direção ao cinema: a multidão invadindo o estúdio de Mohsen Makhmalbaf na abertura de "Salve o Cinema" era prova de que essa pedagogia da percepção começava a dar frutos.
Como dissociar o cinema do processo de democratização do país? Natural que as mulheres se consolidassem como as novas protagonistas ideais. Heroínas da democratização ("O Voto É Secreto") num momento em que se passa da percepção à ação, as mulheres atuam por uma melhor condição. Meninas impedidas de perceber o mundo em "A Maçã", mulheres impedidas de reagir em "O Círculo": numa cultura (islâmica e fundamentalista) que ainda mantém, com a imagem, uma relação de constrangimento; a representação cinematográfica parece ser, para as mulheres, tão importante quanto a política.


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