São Paulo, quinta-feira, 25 de setembro de 2008

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Crítica/teatro/"O que Eu Gostaria de Dizer"

Grupo de Luis Melo encontra tom próprio

LUIZ FERNANDO RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

H ouve um tempo em que o teatro e a literatura significavam coisas bem distintas. Contemporaneamente, os textos que os representam diante de seus destinatários -o público, no teatro, ou o leitor, diante do livro- tendem a perder suas marcas inconfundíveis e se permitem migrar de um território a outro com maior liberdade. O espetáculo "O que Eu Gostaria de Dizer", da Cia. Brasileira de Teatro, é exemplar dessa indefinição. O maior trunfo do grupo paranaense, além da liderança de seu mais experiente e reconhecido integrante -o ator Luis Melo-, é o texto do promissor escritor português Gonçalo Tavares, extraído do livro "O Homem ou É Tonto ou É Mulher", de 2003. Aceito por alguns críticos como um livro de poemas, é assumido pelo autor como um "monólogo dramático em versos" e partilha com a maioria de sua variada obra de uma indistinção de gênero, fluindo entre a prosa poética e a filosófica, entre o romance e o teatro. O texto narrado por Luis Melo não corresponde à fala de um personagem habitual de ficção. Ele se dirige a alguém, mas sem definir ao certo seu alvo. Assim, nunca contata efetivamente o público nem se envolve de forma objetiva com o núcleo dramático paralelo, em que um casal ensaia uma separação. Esse alheamento mútuo colabora para que, a despeito de ações prosaicas como a costura de um botão de calça, a cena e seus supostos agentes nunca deixem um estado de suspensão. O que talvez esteja em jogo ali, e em suspenso, seja a própria vida, colocada em exame de forma sutil e delicada. O texto falado pelos atores e suas ações físicas transcendem a literatura de Tavares. Foram criados coletivamente durante os ensaios. De algum modo, contudo, a instabilidade de registro intrínseca à prosa do escritor contaminou a criação e a condução do espetáculo. A narrativa flutua entre o dramático e o lírico, sempre tensionada e indecisa entre a ficção irrealizável ou uma preleção falhada.

Beckett banal
O texto de Tavares evoca Beckett, mas acresce-lhe uma estranha aura de banalidade. Luis Melo, narrador incógnito e estridente em sua presença concreta, extrai dos silêncios que faz ecoar no público pérolas de emoção genuína. Quando o casal retoma frases enunciadas por ele, ainda há a estranheza, mas algo se perde. A direção de Márcio Abreu buscou a simplicidade cênica, enfatizando o que era frágil e inconsistente naquelas figuras não nomeadas, esboços de seres humanos. Para isso, contou com as esculturas cenográficas de Cláudio Alvarez, pontuando espaços e ambientes vazados e diluindo objetos naturalistas. Os atores Bianca Ramoneda e Márcio Vito desempenham com técnica e entrega, adequando-se à performance madura e despretensiosa de Luis Melo. Depois de anos buscando algo relevante para dizer, ele e seu grupo começam a encontrar o tom de uma fala própria e contam, para isso, com a inquietante literatura de Tavares. Ainda não é o espetáculo que realiza todo o potencial que o grupo detém, mas já se aponta um caminho interessante.

O QUE EU GOSTARIA DE DIZER
Quando: sex. a dom., às 20h30
Onde: Sesc Avenida Paulista (av. Paulista, 119, tel. 3179-3700); até 26/10
Quanto: R$ 5 a R$ 20
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 12 anos
Avaliação: bom

LUIZ FERNANDO RAMOS é professor de teoria do teatro da ECA-USP. Coordena o Grupo de Investigação do Desempenho Espetacular e o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da USP



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