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TEATRO
"4.48 PSICOSE"
Montagem de texto da britânica Sarah Kane expõe fluxo de pensamentos de mulher obcecada pelo suicídio
Peça busca sanidade em meio a convulsão
Marlene Bergamo/Folha Imagem
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Os atores Luiz Päetow e Luciana Vendramini, de "4.48 Psicose", em cartaz no Sesc Belenzinho |
MARIO VITOR SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os espectadores de "4.48
Psicose" encontram-se com
a surpresa logo na chegada. A platéia fica num silo circular a que se
chega descendo uma escada helicoidal. Enquanto o público ainda
se aproxima e tenta reconhecer o
local, bem iluminado, mas profundo e claustrofóbico, explode
com um estrondo o ventre de um
manequim feminino pendurado.
Dela nascem os dois "atores",
vozes gêmeas da narrativa vertiginosa. Trata-se de um teatro feito
no fundo do poço, nas entranhas.
A platéia está dentro do tubo.
O texto sem personagens da
dramaturga inglesa Sarah Kane
(1971-99) expõe o fluxo de pensamentos de uma mulher obcecada
pela idéia do suicídio. É uma espécie de réquiem para a personagem, um balanço de suas insuficiências, um exorcismo, uma invocação ao fim das falsidades que
conformam o viver.
Após uma noite em que "tudo
me foi revelado", a voz parece
querer conjurar espetacularmente todas forças, inclusive as que
atuem sobre a própria forma cênica. Ela blasfema contra Deus, lamenta por ter perdido a fé, ataca a
platéia e o espetáculo que propicia. Uma série de suicídios está
em jogo: além da autodestruição
física da personagem, o desmonte
da própria ilusão teatral parece
ser significativo para que não apenas as figuras em cena, mas o teatro alcance um estatuto superior
de verdade.
O texto da peça (dividido entre
os atores Luciana Vendramini,
Luiz Päetow e o próprio diretor,
Nelson de Sá, que participa da
ação) é composto de "fragmentos
desorientados". A marca comum
é um quase insuportável viés de
magnificação: hiper-realismo do
fluxo mental, ampliado pelos ecos
e o sentimento labiríntico e circular do silo; hiperconsciência da
personagem em estado liminar,
tomada pela visão especial que se
atribui às almas em estado de
transmigração para outra esfera.
A protagonista sabe que vive
numa metáfora, ou seja, a peça
exibida aos espectadores. "A característica que define uma metáfora é que ela é real", diz. O fato de
a autora ter ela própria cometido
suicídio incorpora-se ao texto a
posteriori conferindo-lhe um outro valor de verdade, embaralhando as noções de ficção e realidade,
de autor e personagem, de vida e
linguagem teatral.
Na escolha do espaço, nas elaboradas projeções de imagem e
na trilha sonora, a montagem de
Nelson de Sá -que é editor da
Ilustrada- amplifica ao máximo
uma leitura atenta das possibilidades do texto de Kane. A encenação recusa-se a render-se a uma
leitura "médica", psiquiátrica, induzida pelo título. Ao contrário,
investe na luminosidade e na lucidez presentes na situação.
Infelizmente, porém, o mesmo
não se pode dizer das atuações.
No espetáculo da estréia o que se
ofereceu aos espectadores foram
representações tímidas, lamentos
em forma de preces fúnebres, monocórdias. Assim, o sentido de
exaltação presente no texto enfraqueceu-se numa rendição a uma
atitude tradicional, codificada, de
uma idéia simplista, realista e
convencional do suicídio como
fatalidade e como desgraça.
Isso se explicitou na expressão
etérea de Vendramini e na timidez com que o próprio diretor-ator emite suas linhas, em geral
justamente aquelas que evidenciam no texto uma racionalidade
superior, a síntese que a iminência do suicídio parece propiciar.
Para que as potencialidades de
"Psicose 4.48" aflorem plenamente, os atores precisam liberar-se
de qualquer peso, atuar, encarnar
não só o lamento, mas também o
esfuziante e libertador desespero
da morte como recurso para instaurar a verdade. Trata-se de eliminar o teatro na vida como forma de acabar com a ilusão no teatro, inoculando-o de novo vigor,
pressagiado no explosivo parto
inicial.
Mario Vitor Santos é jornalista
4.48 Psicose
De: Sarah Kane
Direção: Nelson de Sá
Com: Luciana Vendramini e Luiz Päetow
Onde: Sesc Belenzinho - subsolo (av.
Álvaro Ramos, 915, Quarta Parada,
região leste, tel. 6602-3700)
Quando: sáb. e dom., às 19h30; até 7/12
Quanto: de R$ 7,50 a R$ 15
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