São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 2000

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CINEMA

Filme de Michelangelo Antonioni, com Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau, reestréia hoje depois de 39 anos

Erotismo feminino ilumina "A Noite"

Divulgação
Monica Vitti (esq.) Jeanne Moreau em cena do filme "A Noite" (1961), Michelangel Antonioni


ALCINO LEITE NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

O erotismo nos filmes de Michelangelo Antonioni ainda é um tabu para a crítica de cinema. Ele é entretanto parte importante de "A Noite", essa maravilha do cinema moderno que reestréia hoje em São Paulo, em cópia nova, 39 anos depois de seu lançamento.
"A Noite" (61) é narrativamente o mais "conservador" dos filmes que compõem a famosa trilogia sobre o colapso do relacionamento amoroso e que incluiu "A Aventura" (59) e "O Eclipse" (62).
A trilogia teve um imenso impacto na época, pela sua ousadia formal e seu olhar crítico.
A interpretação que se fazia dos filmes era a de que Antonioni tratava numa linguagem sem par a alienação de classe (burguesa) e a situação de viver num mundo ameaçado pela bomba H, onde os significados se dispersavam com rapidez atômica.
No primeiro filme, Antonioni recorrera a uma espécie de mistério (o desaparecimento de uma mulher) para abrir a lacuna narrativa que lhe permitiria filmar o vazio entre as pessoas.
Em "O Eclipse", o relacionamento vai se desfiando por si só em linhas cada vez mais tênues até não sobrar dele senão sinais em coisas dispersas, quase abstratas. A imagem do sol eclipsado levava ao apogeu um cinema que se recusava a representar sentimentos e pretendia demonstrar a reificação geral das relações.
Em "A Noite", tudo ocorre de outro modo. Os personagens são muito sólidos e se confrontam durante o filme inteiro, até resolverem, ainda que precariamente, o seu impasse. Daí a importância do tempo, não como lacuna ou vácuo, mas como passagem, acumulação dramática.
O que é o filme? É uma tarde, uma noite e uma madrugada na vida de um casal em crise, o escritor Giovanni Pontanno (Marcello Mastroianni) e sua mulher, Lidia (Jeanne Moreau).
O primeiro "tempo" é repleto de linhas de fuga e de situações e signos aleatórios. Os olhares dos personagens buscam janelas, portas, ruas vazias, distâncias por onde escapar da situação opressiva em que estão imersos.
Após visitarem um amigo à morte e serem confrontados por isso com a vacuidade de suas vidas, os protagonistas se dispersam. Lidia distancia-se do ambiente burguês e percorre sem rumo as ruas da periferia de Milão.
A "flanêrie" liberadora a faz acumular uma energia erótica, sublime, sem correspondência em Giovanni, mergulhado na prostração intelectual.
A noite começa depois do banho de Lidia, em que Antonioni revela um dos seios de sua estrela, na época um "sex symbol". Será ela quem insistirá para que saiam de casa, façam algo à noite, tentando tirar o marido da letargia.
Na festa, talvez uma das mais extraordinárias já filmadas, a intenção de Lidia surte efeito, mas não com relação a ela mesma: Giovanni acaba se envolvendo com Valentina (Monica Vitti).
Antonioni filma a festa como um sistema caótico, onde o casal praticamente só se confronta com olhares.
O desenlace virá enfim a partir do momento em que ocorre o sacrifício ritual de Valentina.
Ela própria reconhecerá o seu papel de vítima no drama, na esplêndida sequência em que os três personagens se deslocam em um quarto com o cálculo de duelistas. É quando chega a madrugada, momento em que o casal decide se encarar em campo aberto.
A ansiedade erótica de Lidia praticamente conduz "A Noite", fazendo do filme uma das mais sintéticas e precisas descrições da época a respeito do desejo feminino -assunto antigo, mas que o mundo começava então a encarar sem véus e subterfúgios.
Antonioni, entretanto, leitor de Lukács e Adorno, realiza tudo isso num quadro de observação muito maior, de viés materialista, em que a frustração de Lidia é parte do processo de deterioração de uma representação de mundo -a burguesa- e da impotência de um de seus membros mais ilustres -o intelectual.



Filme: A Noite (La Notte)
Diretor: Michelangelo Antonioni
Produção: Itália, 1961
Com: Marcello Mastroianni, Jeanne Moreau e Monica Vitti
Onde: a partir de hoje no Cinesesc




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