São Paulo, quarta-feira, 25 de dezembro de 2002

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CINEMA/ESTRÉIAS

"O GRANDE DITADOR"

Clássico de 1940 que satiriza Adolf Hitler volta aos cinemas brasileiros com cópias restauradas

Charles Chaplin esvazia a pompa dos poderosos

Divulgação
Cena de "O Grande Ditador", que volta aos cinemas brasileiros 62 anos após sua estréia, com direção do ator e produtor norte-americano Charles Chaplin (1889-1977)


INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

De onde vem a euforia de "O Grande Ditador"? Trata-se de um filme da Segunda Guerra, e ali existem países sendo invadidos, judeus perseguidos -enfim, tudo que de pior o nazismo poderia proporcionar no quadro de uma comédia.
Mas, acima de tudo isso, 62 anos depois de realizado, o filme ainda deixa transparecer a alegria de seu autor, Charles Chaplin, ao descobrir a possibilidade de criar um sósia perfeito de Adolf Hitler, na pessoa de Adenoid Hynkel.
Diz a lenda que Hitler sentiu o filme como um soco no estômago. Não seria de espantar. Lá está Hitler, seu bigode, sua gestualidade, seu tom de voz ao discursar.
O que no original provocava devoção ou pânico -conforme o ouvinte- não chega a se tornar ridículo, mas algo talvez pior: insignificante. O vazio é o risco de toda pompa. E o que Chaplin faz é isso mesmo, esvaziar Hitler e o nazismo -e, mais genericamente, todo poder absoluto.
O trailer atual enfatiza a atualidade do filme, afirmando que toda semelhança com situações atuais é mera coincidência. Com efeito, ainda que os grandes ditadores estejam em baixa, pode-se ver o filme como uma parábola sobre a busca de subjugar o mundo a seus desígnios.
Não faz tanta diferença que o ditador se chame Adolf Hitler, Adenoid Hynkel ou simplesmente "mercados". Não faz tanta diferença se, em Israel, os judeus, que eram perseguidos então, hoje não dão trégua aos palestinos.
Mas, acima dessas circunstâncias, o que conta é Chaplin. Chaplin, que nasceu em 1889 e morreu em um Natal, como hoje, 25 anos atrás, é um gênio, portanto alguém de quem devemos suportar mesmo os defeitos, como um egocentrismo não muito menor que o de Hitler. Os filmes de Chaplin são Chaplin, giram em torno dele, de sua figura, de suas gags. Se tirarmos Chaplin dali não sobra quase nenhum encanto.
Mas não há, justamente, como tirar Chaplin dali. E que importa se existe nele uma tendência ao sentimental se ele cria uma sequência como aquela em que Hynkel brinca com um globo terrestre, bola levíssima que ele atira para cá e para lá, como a criança fruindo de seu brinquedo?
Em outro momento ele se põe a dançar (com uma gordota, mulher de Napaloni -leia-se Benito Mussolini-, ditador de bactéria) e toda a habilidade de sua mímica se converte em pura elegância.
No filme, Chaplin faz ainda outro papel, o do barbeiro judeu sósia de Hynkel. Essa é a pior ofensa que poderia ter feito a Hitler: aproximá-lo de um judeu, de um judeu qualquer, que nem ao menos tem memória.
Convém não esquecer que os nazistas viam o cinema -explicitamente- como uma arma de guerra. Isso torna mais compreensível ainda a possível ira de Hitler diante do filme: do ponto de vista da propaganda, tudo isso era um baque considerável.
Quando o filme foi lançado, e mesmo depois, o discurso final -cujas circunstâncias convém não revelar, para não estragar a surpresa de quem ainda não o conhece- se tornou uma espécie de coqueluche: discurso humanista, à maneira de Chaplin, conclamando os homens ao amor por seus semelhantes.
É o aspecto que mais satisfazia às necessidades da propaganda de guerra. Talvez por isso mesmo -e sejam quais forem as analogias que se possam encontrar entre 1940 e 2002- ele parece o que o filme tem de mais convencional e ultrapassado.


O Grande Ditador
The Great Dictator
    
Direção: Charles Chaplin
Produção: EUA, 1940
Com: Charles Chaplin, Jack Oakie
Quando: a partir de hoje nos cinemas Frei Caneca Unibanco Arteplex, Espaço Unibanco e Sala UOL de Cinema



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