São Paulo, segunda, 27 de abril de 1998

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CECÍLIA SAYAD
enviada especial a Paris

Depois do terror psicológico de "O Ciúme" e da áspera crítica social de "Mulheres Diabólicas", o diretor francês Claude Chabrol decidiu fazer um filme leve como "uma bolha de sabão", como ele mesmo definiu.
Filme que, ele bem o sabia, seria um marco em sua carreira pelo fato de ser o 50º. "Negócios à Parte" ("Rien Ne Va Plus") será exibido pela primeira vez nesta sexta, dentro da programação da Semana do Cinema Francês, que começa amanhã (para convidados) e vai até o dia 7 de maio, e acontece em São Paulo e no Rio (leia programação à pág. 5-5).
Segundo o diretor, a obra corresponde a seu temperamento "brincalhão". Com os "veteranos" na filmografia do diretor Isabelle Huppert (que com ele fez "Madame Bovary" e "Mulheres Diabólicas", entre outros), Michel Serrault ("O Fantasma do Chapeleiro", entre outros) e François Cluzet ("Um Assunto de Mulheres" e "Ciúme") no elenco, "Negócios à Parte" conta as aventuras dos trapaceiros Betty (Huppert) e Victor (Serrault).
Em entrevista concedida à Folha, por telefone, de um hotel na região da Bretanha, onde atualmente roda um filme sobre a mentira ("um policial que envolve estupro e assassinato"), Chabrol, um dos expoentes da nouvelle vague francesa, fala sobre o último trabalho, Hitchcock, cinema asiático e "Titanic", entre outros assuntos.

Folha - Quando o sr. filma, até que ponto quer que o espectador se identifique com a história e até que ponto quer que ele guarde um distanciamento crítico?
Claude Chabrol -
Procuro fazer com que ele siga o mesmo caminho que eu: que esteja, ao mesmo tempo, identificado com o personagem, para poder compreendê-lo sem julgá-lo, e distanciado com relação a suas reações.
Folha - Esse processo pode levar a uma ausência de julgamento?
Chabrol -
Há uma certa responsabilidade quando se faz um filme: o espectador pode tomar como exemplo coisas que vê na tela. Não se pode negar que muitos comportamentos de jovens delinquentes sejam um pouco influenciados por um certo gênero de cinema. Mas eu não trabalho nesse domínio.
Com relação a personagens que se comportam de maneira anormal, procuro fazer com que eles sejam compreendidos, mas também com que o espectador tenha uma visão adulta dos fatos, que saiba vê-los de forma crítica.
Folha - Entre seus últimos filmes, muitos são adaptações literárias. "Negócios à Parte" é um roteiro original. O que é mais difícil?
Chabrol -
Depende. Quando encontro um livro que contém idéias que gostaria de exprimir, que tem uma intriga bem-feita e personagens bem construídos, não hesito (risos). É quase preguiça, uma parte do trabalho está feita. Mas às vezes, e é o caso de "Negócios à Parte", eu tenho um problema de tom, que é o elemento mais importante no filme. E esse tom eu não encontrei em nenhuma outra história. A intriga é muito simples, é até banal, mas é a que me serviu para dar o tom que buscava para a relação entre os personagens de Isabelle e Serrault.
Folha - "Negócios à Parte" tem atores com os quais o sr. já trabalhou várias vezes (além de Isabelle Huppert e Michel Serrault, François Cluzet ). É importante que eles ainda o surpreendam?
Chabrol -
É mais seguro trabalhar com atores que conheço. Ao mesmo tempo, ainda espero que eles me surpreendam. E eles conseguem. Principalmente Isabelle. Em "Negócios à Parte", eu havia previsto, de certa forma, os caminhos que ela seguiria. Mas logo no início das filmagens ela soltou uma risada formidável, que nunca a vi soltar antes. Não sei onde arrumou aquilo (risos).
Quanto a Serrault, ele inventa o tempo todo. Se faço três tomadas de uma cena, ele me apresenta interpretações completamente diferentes em cada uma. O problema é que depois não sabe qual escolher, diz que cabe a mim fazê-lo, que ele gosta só de inventar. Seu grande prazer é encontrar as variações de tom, de ritmo.
Folha - Como o sr. vê seu último filme com relação aos anteriores?
Chabrol -
Eu quis fazer um filme leve como uma bolha de sabão, um pouco como os filmes de Lubitsch dos anos 30, ainda que seja pretensão comparar. Os outros são pesados, sinistros. "Negócios à Parte" corresponde mais ao meu temperamento brincalhão.
E a evolução de seu trabalho da nouvelle vague até hoje?
Chabrol -
No começo eu não tinha a impressão de pertencer a uma escola, mas a um grupo de amigos. A nouvelle vague não era nada além disso. Cada um tinha um temperamento. Não tenho a impressão de ter evoluído muito de lá para cá. Minhas preferências, por exemplo, continuam as mesmas. É claro que, por um lado, meus filmes são mais sofisticados, mas, por outro, devo ter perdido um pouco da espontaneidade. Há muito charme no que é malfeito, "desengonçado".
Folha - O sr. costuma assistir a seus primeiros filmes?
Chabrol -
Por princípio, eu não tenho meus filmes em vídeo. Mas, quando eles passam na televisão, eu os vejo com prazer. O engraçado é que, quando tenho uma boa lembrança do filme, fico decepcionado ao revê-lo e, quando tenho uma má lembrança, acho que o filme está bom. Mesmo os filmes ruins -eu fiz quatro ou cinco terríveis-, quando os vejo, acho que já se fez pior.
Quais são os filmes que o sr. fez e de que não gosta?
Chabrol -
Ah, isso eu não vou dizer (risos). Enfim, tem um que é muito ruim: "Folies Bourgeoises". É um fracasso!
A burguesia é frequentemente abordada em seu trabalho e ela é revelada de maneira crítica. Trata-se de uma crítica social?
Chabrol -
Eu trato da burguesia porque venho dela. Mas confesso que o comportamento de uma certa parte da burguesia me é desagradável. Há uma fanatização da propriedade -minha mulher, minha casa, meu trabalho, meu país.
Como é a sua relação com os seus colegas da nouvelle vague?
Chabrol -
É boa. Quando nos vemos, ficamos contentes, mas isso não acontece com frequência. Godard vive na Suíça, então é compreensível. Já Rivette vivia a cinco minutos de minha casa e não nos víamos nunca. Mas vemos os filmes uns dos outros, fielmente. Entretanto, não os discutimos. O único que me telefona é Godard, para me dizer que meus filmes são nulos e idiotas (risos).
Folha - Em seus filmes, sente-se uma grande influência de Hitchcock. O que o atrai mais nesse cineasta?
Chabrol -
Tenho dificuldade em analisar essa influência. Há momentos em que acho que ela é mais aparente do que real e outros em que penso que, ao contrário, ela é tão profunda que eu nem a percebo mais. Mas sempre procuro fazer com que os personagens secundários tenham uma existência que vai além daquilo que se vê na tela: quando há um personagem que só participa de uma ou duas cenas, em vez de mostrá-lo somente como um elemento útil à intriga, tento, como Hitchcock, dar a ele uma espécie de realidade.
Depois, esse diretor refletiu tanto sobre o princípio do suspense e da tensão que acabou por resolver esse problema, então utilizo Hitchcock como um dicionário. Ele me oferece as soluções. O que não quer dizer que eu o copie.
Folha - A crítica parece entusiasmada com a cinematografia asiática (da China, de Hong Kong e Taiwan). Como vê esse cinema?
Chabrol -
Ele é, como todos os outros, desigual. Há coisas formidáveis, mas, ao mesmo tempo, as pessoas não sabem diferenciar o que é bom do que é ruim. Basta que venha da China ou de Hong Kong para que um filme seja considerado bom. Gosto muito de Wong Kar-wai, por exemplo. Já John Woo, depois que ganhou fama e foi para Hollywood, ficou muito menos interessante.
Folha - O sr. gosta de "Titanic"?
Chabrol -
Claro, gosto muito. Sou um admirador de James Cameron há muito tempo, é um grande cineasta. Acho que ele vai salvar Hollywood porque conseguiu mostrar que o que fazia as pessoas assistirem a "Titanic" não era o filme catástrofe, mas a história que acompanhava a tragédia. É interessante lembrar a existência de personagens humanos num cinema feito quase só com robôs. Como "Independence Day", por exemplo, que para mim é um filme de terror.
Folha - E "O Quinto Elemento"?
Chabrol -
Não é o tipo de filme que eu gosto, mas entre os do gênero, é bom. Eu gostava de Luc Besson no início de carreira, quando ele fez "Le Dernier Combat". Depois, virou um cineasta americano. Não é uma crítica. Ele é um dos bons diretores americanos.


A jornalista Cecília Sayad viajou a Paris a convite da Unifrance




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