Festival É Tudo Verdade mostra primeiros documentários do cineasta Wang Bing, que revelam histórias não-oficiais do país

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Que poder tem a imagem? E que uso fazer da palavra? Os primeiros trabalhos do diretor chinês Wang Bing (aclamado em grandes festivais e com dois títulos programados nesta 13ª edição do É Tudo Verdade) se oferecem como respostas possíveis a questões que movem qualquer cineasta e que se impõem mais ainda aos documentaristas.
Em "Além dos Trilhos", um épico com mais de nove horas de duração, o diretor registra a dissolução gradual do distrito industrial de Tie Xi, localizado no nordeste da China.
Com uma câmera digital e sem autorização oficial, Wang filmou entre 1999 e 2001 o esvaziamento da produção e a conseqüente falência das usinas de transformação de minérios concentradas na região.
Seu interesse é na captação do estado de abandono reiterado em dois tipos de imagens recorrentes: os espaços das fábricas, sujeitos à deterioração ou já entregues à condição de ruína; os indivíduos, entregues a situações de ócio que transmitem a olho nu o desinteresse da nova ordem por essas criaturas que mais parecem zumbis de um passado em acelerado processo de extinção.
"Além dos Trilhos" funciona como um contraponto documental ao trabalho que Jia Zhang-ke, seu colega de estudos, vem construindo na vertente ficcional, ambos interessados em captar as grandes transformações da história chinesa da perspectiva das individualidades. Já em "Fengming - Memórias de uma Chinesa", Wang Bing se arrisca numa estratégia estética situada no plano invertido ao que realiza em "Além dos Trilhos".
Em mais de três horas, o filme exibe um longo depoimento de uma senhora que passou por todas as fases da revolução comunista liderada por Mao Tse-tung. Seu discurso testemunha um extenso calvário de perseguições sofridas por ela e o marido. Acusados de posições de direita, passaram anos vivendo separados em campos de trabalho, sujeitados ao processo de reeducação durante a fase da Revolução Cultural.
A câmera de Wang pouco se move, tenta nunca perturbar o fluxo da memória de Fengming. Desse modo, a fixidez permite que a palavra se incorpore à imagem e reproduza nela a força do choque da experiência vivida.