São Paulo, sexta-feira, 28 de março de 2008

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Crítica/"Serras da Desordem"

Odisséia de índio resulta em fascinante aventura do cinema

Andrea Tonacci usa imagens de arquivo e telejornais de época em novo longa

Divulgação
Cena de "Serras da Desordem', que reconstitui história de índio

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

No início, em branco-e-preto, vemos um homem, um índio, preparar seu leito na floresta. Ele traz as folhas de árvore sobre as quais repousará seu corpo. A cena é detida nos gestos do homem, seu tempo é lento o bastante para pensarmos o que será esse leito: um para esse errante passar a noite ou seu leito de morte?
Logo em seguida, o homem deita-se. As imagens tornam-se coloridas e, após breve confusão, entramos numa espécie de paraíso por onde transita um grupo de índios. Aqui, ainda, a ambigüidade: o que é isso, um flashback que nos remete a anos atrás ou um sonho?
De todo modo, saberemos depois, trata-se do grupo (aparentemente é menos que uma tribo) a que pertence o índio Carapiru. Eles pescam, passeiam, nadam, brincam com seus animais domésticos.
Até que esse paraíso que parece descrito por Rousseau subitamente é invadido por homens brancos. A família se dispersa. Carapiru permanece só. Invade uma propriedade e se mune de alguns poucos apetrechos que lhe garantem a sobrevivência e parte. Para onde? Não importa. O importante é que permanece só.

Tratamento ambíguo
O fato de Carapiru, o personagem, ser boa parte do tempo interpretado pelo próprio Carapiru prolonga e acentua certas ambigüidades propostas pelo filme, como se Andrea Tonacci quisesse, conscientemente, alimentar a dúvida entre documentário e ficção. Pois ficção não é "o que se inventa"? Bem, em princípio temos aí uma história não-inventada. E o documentário não é o que "capta fatos reais"? Mas, aqui, não se trata de captar fatos, mas de reconstituí-los, utilizando, aliás, todos os meios à disposição (imagens de arquivo, telejornais de época, participação de pessoas reais).
Tonacci sabe, por um lado, que a história do índio que se perdeu durante anos de sua tribo é um épico (implica ele, mas também o seu grupo, o Brasil como Estado e como sociedade, a história e o tempo). Mas, como escreveu Daniel Caetano (na revista eletrônica "Contracampo"), como vincular uma saga e a narrativa dessa saga é boa parte do problema.
E Tonacci não recusa nenhum material: nem o filme negativo, nem o suporte digital, nem atores, nem pessoas que viveram o caso, nem o documentário, nem a biografia, nem a ficção, enfim: todas as forças do mundo parecem necessárias para dar conta dessa história.
Uma história fabulosa: a de um homem só que vaga pelo interior do Brasil por anos, é acolhido por brancos como uma espécie de bicho de estimação, mais tarde resgatado pela Funai e levado a Brasília etc. A vida de Carapiru é uma odisséia.
Cineasta escrupuloso, Tonacci se pergunta, inclusive, o que significa "reconstituir" ou encontrar e reencenar indícios da vida de Carapiru: trata-se de restituí-la ao sujeito ou, ao contrário, de explorá-la mais uma vez? Trata-se de dar voz a Carapiru ou, fingindo fazê-lo, usá-lo para fins outros? Como se vê, quem não aprecia que os filmes nos coloquem questões -em vez de solucioná-las- não deve chegar perto de onde "Serras da Desordem" estará passando.
Os demais estarão em contato com uma fascinante aventura humana -a de um homem que leva sua vida e seu povo resumidos nas costas, nos poucos objetos que carrega solitariamente- e também com a mais fascinante aventura a que se permitiu o cinema neste século 21, aqui no Brasil.


SERRAS DA DESORDEM
Produção: Brasil, 2005
Direção: Andrea Tonacci
Com: Carapiru, Tiramukõn
Onde: estréia hoje no cine Bombril
Avaliação: ótimo



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