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São Paulo, segunda-feira, 28 de julho de 2003

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VANGUARDA

Diretor de "Um Cão Andaluz" e "O Discreto Charme da Burguesia" teve suas origens artísticas na literatura

Luis Buñuel protagonizou um cinema único

JAVIER PÉREZ BAZO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre os espanhóis universais, Luis Buñuel (1903-1983) ocupa um lugar de destaque. Foi um homem de convicções indeléveis, autor de uma extensa filmografia, artista obcecado por seu próprio mundo e pela construção de uma trajetória de extrema originalidade e coerência.
Custa crer que a arte cinematográfica do Buñuel mais jovem -em "Um Cão Andaluz" (1929) e "A Idade do Ouro" (1930)- possa ser reproduzida de maneira alterada ou semelhante nos dias de hoje. Trata-se de um cinema impossível de repetir por múltiplas razões -fundamentalmente, no entanto, por ter surgido em um momento ancorado no contexto da chamada vanguarda artística espanhola, nos anos 20 do século passado, que resultou, para a literatura e a arte em geral, em uma época de esplendor só comparável, "mutatis mutandis", ao Renascimento e ao Barroco.
"Um Cão Andaluz", que tanto deve a Salvador Dalí, é uma obra-prima do gênero e certifica a especificidade do surrealismo em sua vertente cinematográfica; é também a incubadora das obsessões posteriores do cineasta.
O filme representa uma reviravolta importantíssima no cânone do movimento impulsionado por André Breton, mas paradoxalmente foi realizado antes que Buñuel se declarasse surrealista.
Depois veio "A Idade do Ouro", o "filme do amor louco", que escancarou as portas do cinema sonoro na França e provocou o escândalo do Studio 29. A extrema direita não pôde suportar tamanha afronta e quis queimar as embarcações surreais da arte nova.
Não se costuma dar o devido destaque ao fato de que as origens artísticas de Buñuel são estritamente literárias. Das letras, passou ao cinema. Mas deu seus primeiros passos no movimento poético ultraísta, uma vanguarda poética especificamente hispânica. Quis ser escritor e poeta, mas foi como cineasta que se transformou em uma das figuras mais notáveis da arte do século 20.
É importante destacar a influência que a obra literária de Ramón Gómez de la Serna, especialmente suas "greguerías" (aforismos humorísticos), exerceu sobre ele. Sem esse influxo, dificilmente seria possível compreender a obra cinematográfica inicial de Buñuel.
É factível praticar, no cinema atual, um surrealismo à maneira de Buñuel? Para começar, as técnicas surrealistas seriam vistas hoje como anacrônicas. Mas o substrato crítico de seu cinema (seu sarcasmo, seu simbolismo reiterativo, a leitura impiedosa da sociedade) poderia adquirir, em uma forma evoluída, certa vigência para o mundo de hoje.
A pergunta poderia ser estendida à literatura ou à poesia. A poesia surrealista tem seus paradigmas mais significativos em "Poeta em Nueva York", de Federico García Lorca, em "Un Rio, Un Amor y Los Placeres Prohibidos", de Luis Cernuda, ou em "Sobre los Ángeles", de Rafael Alberti.
Mas trata-se, nesses casos, de um surrealismo poético heterodoxo, um surrealismo que desapareceu quando a poesia optou pelo compromisso político e ideológico, durante a Segunda República e, depois, ao longo da Guerra Civil espanhola.
No cinema espanhol, Carlos Saura lembra vagamente Buñuel. Mais tarde, nos trabalhos de Almodóvar, há quem tenha querido identificar certa influência das obras mais surpreendentes de Buñuel, mas acredito que essa apreciação seja própria de uma visão distorcida pelos espelhos do suposto pós-modernismo.
Buñuel teve influência sobre cineastas posteriores, se bem seja conveniente recordar que, por um longo tempo, sua produção era desconhecida na Espanha, enquanto na França filmes como "Viridiana" (1961) e "A Bela da Tarde" (1966) atingiam o sucesso, e "O Discreto Charme da Burguesia" (1972) se tornava referência da clandestinidade durante o obscurantismo franquista.
Duvido que venha a surgir uma ruptura tão radicalmente inovadora e revolucionária como a que Luis Buñuel executou. Isso não quer dizer que o cinema espanhol não tenha atingido uma refinada maturidade, que, em certos casos, cruza as fronteiras espanholas e ganha destaque no cinema internacional. Resta citar nomes. Passo a palavra aos jovens cineastas.


Javier Pérez Bazo é doutor em literatura espanhola na Universidade de Toulouse e especialista em arte e literatura de vanguarda; autor de "Los Andrade: Tres Poetas Modernistas Brasileños" e participante da exposição e do catálogo "Luis Buñuel: Cien Anos"


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