São Paulo, Quinta-feira, 28 de Outubro de 1999
Próximo Texto | Índice

CINEMA MOSTRA DE SP
"A Carta" faz encontro entre rock e jansenismo

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Um dos maiores pecados que o Brasil pode praticar, no aspecto artes, é persistir na ignorância de Manoel de Oliveira, apesar das inúmeras chances que lhe têm sido oferecidas (em geral pela Mostra de Cinema, mas não só).
Maior será o equívoco a colocar de lado o magnífico "A Carta", que não é um dos filmes mais marcantes do ano apenas porque o é da década.
Oliveira detém-se ali na malfadada história de amor entre uma aristocrata francesa, a Mme. de Clèves, e um roqueiro português, Luís Abrunhosa.
A audácia temática talvez fique mais clara se lembrarmos que Oliveira não liga dois mundos distantes (o da aristocracia e o do pop), mas dois séculos distantes: o 17 e o 20. Pois o 17 é o século de "Princesa de Clèves", romance sobre uma mulher que se casa sem amor com um homem que muito respeita (exatamente como a personagem de "A Carta").
Oliveira não faz nenhum esforço para atualizar o mundo de Mme. de Clèves. A austeridade de seus princípios a leva até Port Royal, convento das religiosas jansenistas, onde é recebida por uma amiga à sombra do retrato da madre Angélique Arnauld.
Ora, como se sabe, o jansenismo foi banido como herético ainda no século 17, e a abadia de Port Royal destruída.
Bastaria essa contradição para deixar os espectadores com olhos e ouvidos abertos. Pois Oliveira faz com que dois mundos -um extinto, ao menos teoricamente- convivam no mesmo espaço e no mesmo tempo.
Essa sensação de estranheza que qualquer espectador sentirá, com razão, ao ver o filme, prolonga-se na curiosa figura de Abrunhosa, o roqueiro, que também se apaixona pela mulher e se vê carregado por essa circunstância a um outro século.
Haverá quem pergunte: e daí? Daí que todo nosso mundo de "fim da história" vê-se subitamente abalado pela constatação de que o presente e o passado mantêm entre si relações mais curiosas e profundas do que imaginamos habitualmente.
Ao proceder a essa torção sutil do tempo, Oliveira não mistura dois mundos e duas épocas perfeitamente diferentes, dois modos de sentir e experimentar as coisas, mas subverte a noção de tempo, permitindo-lhes conviver num mesmo espaço -que não é o da Paris contemporânea propriamente, mas o do filme.
Um artifício que lhe permite refletir sobre o que, na vida, é mutável e imutável. Não somos seres simples. O solo onde pisamos é formado de muitas camadas, que se vão acumulando. Seria insuportável pensar que a última -o rock, no caso- devora e destrói todas as demais. Em cada um de nós existe um lado Abrunhosa -o presente, a libertação, a irracionalidade, a revolta- e um lado Clèves -o passado, a fé, a resignação, a razão.
Cada ocidental carrega em si essa carga contraditória, composta pelos vários momentos de sua história e de seu pensamento. Esse é o fundamento profundamente realista do filme, onde o arbitrário irrompe com toda força, apenas para chegar com mais força e evidência à demonstração de uma verdade profunda.
É verdade, Mme. de Clèves e Abrunhosa estão fadados a um amor impossível. A um amor de perdição, para lembrar o título de outro soberbo filme do cineasta português, na medida em que esses dois mundos -o do passado e o do presente- devem de algum modo permanecer irrenconciliáveis.
Mas é na soberba capacidade de promover seu encontro -ainda que precário- e de dele arrancar uma beleza segura e seca que está o gênio de Oliveira, um dos maiores realizadores do cinema moderno.


Avaliação:     

Filme: A Carta (La Letre) Direção: Manoel de Oliveira Produção: Portugal/França/Espanha, 1999, 107 min Quando: hoje, às 19h30, no Cinearte

Próximo Texto: João Monteiro cria ode anarquista aos prazeres do mundo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.