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CINEMA MOSTRA DE SP
"A Carta" faz encontro entre rock e jansenismo
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Um dos maiores pecados que o
Brasil pode praticar, no aspecto
artes, é persistir na ignorância de
Manoel de Oliveira, apesar das
inúmeras chances que lhe têm sido oferecidas (em geral pela Mostra de Cinema, mas não só).
Maior será o equívoco a colocar
de lado o magnífico "A Carta",
que não é um dos filmes mais
marcantes do ano apenas porque
o é da década.
Oliveira detém-se ali na malfadada história de amor entre uma
aristocrata francesa, a Mme. de
Clèves, e um roqueiro português,
Luís Abrunhosa.
A audácia temática talvez fique
mais clara se lembrarmos que Oliveira não liga dois mundos distantes (o da aristocracia e o do
pop), mas dois séculos distantes:
o 17 e o 20. Pois o 17 é o século de
"Princesa de Clèves", romance
sobre uma mulher que se casa
sem amor com um homem que
muito respeita (exatamente como
a personagem de "A Carta").
Oliveira não faz nenhum esforço para atualizar o mundo de
Mme. de Clèves. A austeridade de
seus princípios a leva até Port Royal, convento das religiosas jansenistas, onde é recebida por uma
amiga à sombra do retrato da madre Angélique Arnauld.
Ora, como se sabe, o jansenismo foi banido como herético ainda no século 17, e a abadia de Port
Royal destruída.
Bastaria essa contradição para
deixar os espectadores com olhos
e ouvidos abertos. Pois Oliveira
faz com que dois mundos -um
extinto, ao menos teoricamente- convivam no mesmo espaço
e no mesmo tempo.
Essa sensação de estranheza
que qualquer espectador sentirá,
com razão, ao ver o filme, prolonga-se na curiosa figura de Abrunhosa, o roqueiro, que também se
apaixona pela mulher e se vê carregado por essa circunstância a
um outro século.
Haverá quem pergunte: e daí?
Daí que todo nosso mundo de
"fim da história" vê-se subitamente abalado pela constatação
de que o presente e o passado
mantêm entre si relações mais curiosas e profundas do que imaginamos habitualmente.
Ao proceder a essa torção sutil
do tempo, Oliveira não mistura
dois mundos e duas épocas perfeitamente diferentes, dois modos
de sentir e experimentar as coisas,
mas subverte a noção de tempo,
permitindo-lhes conviver num
mesmo espaço -que não é o da
Paris contemporânea propriamente, mas o do filme.
Um artifício que lhe permite refletir sobre o que, na vida, é mutável e imutável. Não somos seres
simples. O solo onde pisamos é
formado de muitas camadas, que
se vão acumulando. Seria insuportável pensar que a última -o
rock, no caso- devora e destrói
todas as demais. Em cada um de
nós existe um lado Abrunhosa
-o presente, a libertação, a irracionalidade, a revolta- e um lado Clèves -o passado, a fé, a resignação, a razão.
Cada ocidental carrega em si essa carga contraditória, composta
pelos vários momentos de sua
história e de seu pensamento. Esse é o fundamento profundamente realista do filme, onde o arbitrário irrompe com toda força,
apenas para chegar com mais força e evidência à demonstração de
uma verdade profunda.
É verdade, Mme. de Clèves e
Abrunhosa estão fadados a um
amor impossível. A um amor de
perdição, para lembrar o título de
outro soberbo filme do cineasta
português, na medida em que esses dois mundos -o do passado
e o do presente- devem de algum modo permanecer irrenconciliáveis.
Mas é na soberba capacidade de
promover seu encontro -ainda
que precário- e de dele arrancar
uma beleza segura e seca que está
o gênio de Oliveira, um dos maiores realizadores do cinema moderno.
Avaliação:
Filme: A Carta (La Letre)
Direção: Manoel de Oliveira
Produção: Portugal/França/Espanha,
1999, 107 min
Quando: hoje, às 19h30, no Cinearte
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